QUADRINHOS

Gidalti Jr. faz imersão na Amazônia em nova HQ

Autor dos premiados "Castanha do Pará" e "Brega Story" trabalha em nova história sobre garimpos na região.

Gidalti Jr. faz imersão na Amazônia em nova HQ

Este mês de outubro, o quadrinhista Gidalti Jr. foi um dos 20 agraciados pelo Proac (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo) para a realização e publicação de uma obra inédita de HQ. Gidalti Jr. é mineiro de nascimento, mora em São Paulo há pouco mais de uma década, contudo é paraense de coração e criação. Ele se mudou com a família para Belém aos quatro anos de idade, então tem quase toda sua vivência aqui. Consequentemente, suas duas obras, ambas premiadas e aclamadas pela crítica, “Castanha do Pará”, vencedora do Prêmio Jabuti, e “Brega Story”, vencedora do CCXP Awards, se passam na capital paraense e retratam a realidade local. Agora, seu novo projeto, “Todo o ouro da Amazônia – A lei do garimpo” – nome do projetor, não necessariamente o do álbum – se passa em regiões de garimpo em toda a Amazônia.

A nova HQ de Gidalti Jr. está em processo de produção há alguns anos, o que demandou dele várias viagens de pesquisa. O autor passou pelo Tapajós e por Serra Pelada, no Pará. Ainda chegou ao Amapá, Guiana Francesa e Suriname. O fato de ter sido premiado pelas suas HQs anteriores o proporcionou viagens por quase toda a região, para participar de feiras e congressos literários. Em suma, foi durante esses deslocamentos que ele aproveitou para conhecer melhor essa realidade.

Obra revela mazelas individuais e sociais

Em síntese, a HQ fala sobre Batista, “um garimpeiro que, junto com seu grupo, busca encontrar um grande veio de ouro no norte do Brasil. Ele foge da extrema pobreza no Maranhão e segue os passos de homens considerados corajosos e desbravadores em seu meio. Assim, se aventura em Serra Pelada, no Tapajós e na Guiana Francesa, acompanhado por um grupo de garimpeiros. Por lá, enfrentam a polícia que combate o garimpo ilegal, invadem territórios indígenas e vivenciam as oscilações dramáticas da vida na garimpagem. Nesse meio tempo, a saga do garimpeiro revela as obsessões e mazelas, tanto individuais quanto sociais, que permeiam a atividade garimpeira”.

Em entrevista exclusiva ao Caderno Você, Gidalti Jr. fala sobre o novo projeto, sobre as raízes fincadas na Amazônia, do mercado editorial e de como busca criar uma identidade própria além das referências e influências do mundo da Nona Arte.

Depois de dois trabalhos urbanos, ambos muito elogiados, você enveredou por uma temática mais rural. Por que essa decisão de mudança de cenário?

Gidalti – Eu tenho esse entendimento de que é importante representar a Amazônia e a região Norte em vários aspectos. E há um imaginário tanto nacional quanto internacional da nossa região como uma região na floresta, no meio rural. Nos meus dois primeiros trabalhos, eu havia apresentando um aspecto mais urbano.  Eu acho que havia uma lacuna em relação a essas abordagens. Meu novo projeto vai fazer um movimento contrário. Vai trazer uma Amazônia mais imersa na floresta, na vida rural.

Isso é um processo natural e tem muito a ver com os últimos anos, as últimas viagens que fiz, como na região do Tapajós, na região de fronteira com a Guiana. Então, nos últimos anos eu venho frequentando e conhecendo mais espaços, dando passos profundos na Amazônia. E necessitava colocar essa minha vivência, essa pesquisa, em um novo projeto. Quero ressaltar que essa lógica entre cidade e campo é uma constante na Amazônia. Essa fronteira é muito tênue, e acho que o trabalho deve caminhar nesse sentido, explorar esses limites.

Detalhe do garimpeiro, personagem principal da nova HQ. REPRODUÇÃO

História surgiu em meio a viagens de Gidalti Jr.

Essa mudança exigiu uma quantidade maior de pesquisa? E como foi essa pesquisa? Foi mais em estudos ou houve visitas in loco?

Gidalti – Eu naturalmente já venho viajando mais pelo Pará, e como disse, nessa região de fronteira. Justamente por ter publicado os meus primeiros quadrinhos venho sendo convidado para festivais na região. E não necessariamente festivais metropolitanos, mas festivais mais distantes. Então, por exemplo, estive na Guiana Francesa e fui até o Suriname. Visitei diversas cidades e essa relação entre cidade e floresta é muito tênue e interessante. É tudo muito próximo, então passei também a ter uma experiência bastante rica com as comunidades indígenas e ribeirinhas nessa região.

Também tive a oportunidade de fazer trabalhos na região de Serra Pelada. Na época em que eu era publicitário, trabalhava com uma mineradora. Então, visitei a Serra Pelada e entrei na mina de ouro da Colossus. A gente desceu no túnel que tem quilômetros debaixo da terra. Então, eu naturalmente fui viciando nesses espaços e estou procurando trazer um retrato dessa zona garimpeira. Cheguei a passar uns dias no garimpo Creporizão, na região do Tapajós, e vi as minas, as dragas. Foi uma experiência bastante rica, nesse sentido, e trouxe uma consistência muito grande para meu trabalho.

Mainstream x cena independente

Com duas obras tão consagradas e elogiadas, apareceram propostas de grandes editoras do Brasil ou de fora do país?

Gidalti – Eu comecei como autor independente, com o “Castanha do Pará”. Depois meu trabalho foi incorporado a um grande selo editorial, que é a Sesi. Então, assim, a tua análise, ela tá correta até certo ponto, porque a mídia quadrinho, ela tem essa característica de nicho. Eu consigo frequentar esses ambientes mais independentes, tanto em termos de eventos, de feiras, como alguns mainstream também, de grandes editoras e livrarias tradicionais. Entrei no catálogo da Sesi, que é uma rede gigante.

O “Brega Story” foi publicado também por uma grande casa e hoje a Braza publica o meu trabalho, que é uma editora menor. Então, acho que entre editoras grandes, editoras pequenas, eventos grandes, eventos pequenos,  isso é característico dos quadrinhos, que têm um público fiel. Na verdade, o que banca o quadrinho mesmo é um público mais fiel, é uma tribo, como um grupo que acaba sendo a indústria econômica.

É importante, ao mesmo tempo, ter uma atenção ao mainstream, aos grandes grupos, mas entender também que a mídia quadrinho é uma mídia meio de tribo. Eu procuro circular entre esses dois mundos.

A opção pela aquarela tende a ser uma constante em sua carreira ou já pensa em mais técnicas?

Gidalti – Eu gosto muito de aquarela. Eu acho que é uma mídia que funciona muito bem nos quadrinhos. Gosto muito do trabalho dos europeus e isso faz parte também da tradição europeia, das HQs franco-belgas. Assim, eu gosto muito da praticidade, da expressividade da aquarela. Mas, ao mesmo tempo, não é todo o meu trabalho que segue nesse sentido. Por exemplo, “Castanha do Pará” é um trabalho pintado em aquarela, mas o “Brega Story” tem o miolo  majoritariamente preto e branco, quase 90% dele.

Também gosto de trabalhar com nanquim, com pincel, entre outros. Nesse novo projeto, eu tenho colorido com aquarela, mas não sei exatamente o acabamento final que a gente vai desenvolver. Mas, posso dizer que a aquarela está sempre no meu radar, gosto bastante. E é uma questão de preferência mesmo, de estética.

Gidalti Jr. fala de arte contra a censura

Em 2018, a capa da “Castanha do Pará” sofreu uma censura. Eram tempos difíceis, mas a extrema direita continua forte e ativa. Por conta disso, a arte e sua condição de resistência ganha mais força?

Gidalti – Acho que, independentemente do contexto atual, a arte sempre vai exercer um poder de fogo na sociedade. Eu acho que a arte somente pela estética é vazia. A arte sempre vai ser um motor, não obviamente o único, mas ela vai ser um motor das transformações sociais. Onde houver demanda de transformação, de mudança, não só na seara política, estou falando na seara comportamental, a arte é, sem dúvida, um modelador da história.

Isso não tem a ver com o momento que a gente vive. Essa é uma característica, esse é um poder da arte, de ser questionadora, transformadora, modificadora. A cultura, de uma maneira geral, é “imparável”, não tem como a cultura morrer e não tem como ela enfraquecer. Ela vai ser sempre um elemento poderoso na sociedade.

Manter essa independência atual, diante de maiores convites, chega a ser um desafio? Seria mais fácil encarar projetos por encomendas e melhores financeiramente?

Gidalti – O muito editorial é difícil, geralmente é tanta gente publicando que é muito difícil para uma editora. O mercado é muito passivo, tem muito mais a ver com o tipo de ação que você tem como autor do que necessariamente o mercado ir atrás de algum autor. Não é assim que funciona, porque, além disso, o mercado não vive a sua melhor fase.

É muito difícil viver de livro no Brasil. É muito difícil viver de cultura. Então, essa lógica de ser descoberto, de ser procurado, ela não é complicada, obviamente na minha perspectiva. Mas, eu estou aberto a qualquer possibilidade. E, sinceramente, não me preocupa muito estar vinculado a uma grande casa editorial ou uma casa  pequena, ou ser independente.

A realidade de quem trabalha com livro é muito parecida em todos esses contextos. Se você pega nomes como Raphael Montes, Paulo Coelho, Jeferson Tenório, você está falando de alguém que, de fato, sobressai a toda média do livro no Brasil. Mas em regra, está todo mundo trabalhando na mesma casa, em termos de números de vendagem, em termos de distribuição. É tudo muito parecido. Mas, enfim, estou caminhando, jogando o jogo, e isso para mim é um elemento secundário.

Essência nortista mesmo em SP

Mesmo longe do Pará há mais de dez anos, você continua com raízes amazônicas bem fincadas. O quanto a região ainda desperta muito da tua criatividade? Você ainda se vê explorando outros assuntos amazônicos em tua carreira?

Gidalti – A minha formação é nortista. Eu tenho casa e estou sempre em Belém. Estou sempre antenado nas questões da política local. O meu meio social é um meio belenense, amigos, família. Então, não tem como estar descolado de Belém e da região Norte. Para mim, é muito mais cômodo trabalhar a partir das nossas essências.

São Paulo tem essa característica de um lugar que não está de passagem, mas é sempre uma sensação de passagem. Porque a nossa relação com o Sudeste – e eu não estou falando de mim, estou falando do nordestino, do nortista, ou do cara do Sul -, São Paulo tem essa característica de atrair essas pessoas, mas o vínculo emocional, social, é sempre do seu lugar de origem. Estou aqui há uma década e já tenho certas raízes, mas a minha essência é nortista. Consequentemente, os meus personagens, os meus conflitos vão sempre caminhar por esses territórios.

Página em construção da nova obra de Gidalti Jr. REPRODUÇÃO

Quais as influências dentro das HQs de escritores a desenhistas e de outras áreas com literatura e artes plásticas que ainda tens?

Gidalti –Eu venho da Comunicação e das Artes Plásticas e tenho referências desse meio. Mas, acho que chega um momento na sua trajetória que você já não quer mais referências, entende? Não tenho mais essa pretensão de ter referências. Eu até gostava de falar sobre isso e tinha um pouco a ver com uma imaturidade artística. O que eu hoje procuro no meu trabalho é a não referência, sinceramente. Eu estou buscando cada vez mais a autenticidade. E isso não é cuspir no prato que comeu, é uma honestidade mesmo.

Sendo bastante honesto, eu sinto que a lógica da referência acaba sendo uma mochila pesada. Você está o tempo todo olhando para lá, você não está olhando para frente, você está olhando sempre para os lados. E já fiz muito isso porque sempre fui um cara que gostei muito de consumir cinema, quadrinho, literatura, artes plásticas, sempre gostei muito.

Referências criativas

É óbvio que é impossível isso de não estar vinculado às referências, estou fazendo um trabalho numa mídia que existe há quase 200 anos. Não dá para a gente ser cru. Mas, é isso que eu tenho buscado, a minha natureza. Às vezes você paga um preço por isso, porque acontece muito de o editor pegar meu trabalho e ele não entender. 

Tem uma matéria do Érico Assis que ele faz um pequeno mapa das minhas referências com artistas brasileiros e é uma análise bem honesta, porque entendo hoje que a minha referência é o brasileiro.

Se for falar de referências, eu gosto muito dos autores brasileiros, gosto dos filmes brasileiros, da literatura brasileira. Mas eu bebo em tantas fontes, consumo tanta coisa. E tem um olhar científico sobre algumas obras também, no sentido de decodificar a linguagem. E isso é tão grande que é difícil de falar quem está no meu bolso, quais são as minhas ferramentas.

Estudos de linguagem

Mas, eu tenho hoje um hábito de estudar linguagem, não mais puramente a estética da pessoa, o formalismo, como a pessoa resolve a linha. Não estou mais nessa “noia” de roubar a linha entre (Enki) Bilal e (Juanjo) Guarnido, falando de pessoas que durante muito tempo eu olhava assim, emulando, tentando. Hoje eu procuro muito mais entender da linguagem de uma maneira mais abstrata, e tentar incorporar um trabalho próprio, autoral.

Isso é um desafio. Não sei se eu consigo, mas, enfim, já tenho 40 anos e não sou mais tão menino. Eu vivo esse momento de conexão, de diferença e busca de uma linguagem autêntica. É um desafio, mas é isso que eu tenho procurado fazer.