Texto: Sérgio Alpendre (FOLHAPRESS)
Um senão que se poderia fazer a “O Quarto ao Lado”, novo longa de Pedro Almodóvar e o primeiro que o cineasta espanhol roda em inglês, é que por vezes as falas dos personagens soam pregações para convertidos.
O cientista Damian, interpretado por John Turturro, condena o aquecimento global, a sociedade que nada faz para impedi-lo, o neoliberalismo, o fundamentalismo religioso e o crescimento da extrema-direita. Coisas que, segundo ele, estariam apressando a destruição do mundo.
A personagem moribunda de Tilda Swinton também tem algumas falas nessa linha. Mas ela quer se despedir da vida. Principalmente porque, com sua condição, não vê motivos para maltratar o corpo com tratamentos experimentais.
Não é difícil concordar com essas falas, ainda mais pela forma culta com que são ditas. Qualquer pessoa pode reconhecer esses problemas. A questão está mesmo na maneira de lidar com eles e com a vida.
Cinema para fazer pensar
O lado panfletário, contudo, é evitado habilmente, graças a dois fatores. O primeiro é que Almodóvar tem tamanho para furar a bolha e falar com gente esclarecida, mas conservadora. Logo, não estaria pregando só para convertidos, mas alertando o público de cinema para problemas graves que muitos preferem ignorar. Entreter para esquecer os problemas não é a praia do diretor.
É certo que o cinema não tem o poder de mudar o mundo. Almodóvar sabe disso. Mas não custa nada fazer os espectadores pensarem um pouco, tirá-los da posição passiva facilitada pela poltrona do cinema, pelos sacos de pipoca e pelos smartphones que teimam em usar mesmo durante o filme.
Filme é belo melodrama sobre dignidade humana
O segundo fator é mais sutil e subjetivo. O cineasta tem um domínio tão seguro da dramaturgia e do específico cinematográfico que consegue ultrapassar o que poderia ser uma colcha de slogans e fazer um belíssimo melodrama sobre a dignidade humana.
Na trama, baseada no livro “What Are You Going Through”, de Sigrid Nunez, temos a escritora Ingrid, interpretada por Julianne Moore, que passa por Nova York para lançar seu novo livro.
Numa sessão de autógrafos, ela fica sabendo que uma velha amiga chamada Martha Hunt, vivida por Swinton, que há tempos não via, estaria internada para tratamento de um câncer em estágio avançado.
Ingrid vai então ao hospital visitar Martha. E ouve dela uma proposta que inicialmente recusa, mas logo depois aceita: acompanhá-la por um período de um mês numa casa de campo, onde Martha cometeria a eutanásia, graças a uma pílula que conseguiu comprar nos meandros obscuros da internet.
Na casa, Ingrid ficaria no quarto ao lado, pois Martha não consegue cumprir o seu desejo sem alguém de quem ela goste por perto. O código para que Ingrid saiba quanto Martha resolver engolir a pílula, é a porta do quarto, que estaria sempre aberta, mas seria fechada no momento definitivo. Uma porta vermelha, claro.
Novo longa aperfeiçoa o que Almodóvar fez em “Tudo sobre minha mãe”
Na tradição do grande melodrama americano, de George Cukor e Douglas Sirk, Almodóvar se sai muito melhor que o esperado após ter feito dois curtas em inglês que não fazem sequer uma tímida inscrição em sua filmografia.
O sucesso estético alcançado por ele lembra o do ótimo diretor argentino Alejandro Agresti, que, uma vez em Hollywood, fez um de seus melhores filmes, “A Casa do Lago”, de 2006, outro melodrama com uma bela casa como referência.
Mas “O Quarto ao Lado” é um filme realista, ao contrário do filme de Agresti. Não vemos o maneirismo típico de filmes como “Fale com Ela” ou “A Pele que Habito”. O cineasta espanhol trabalha uma contenção que é quase inédita em sua carreira, ampliando e aperfeiçoando as possibilidades melodramáticas de seu “Tudo Sobre Minha Mãe”.
Talvez por fazer pela primeira vez um longa em inglês, as citações de filmes, livros ou outras obras de arte são de artistas anglo-americanos: Virginia Woolf, James Joyce, Edward Hopper, Buster Keaton, John Huston. Almodóvar faz uma espécie de homenagem à arte de criadores que falam ou se expressam em inglês.
Produção hispano-americana, “O Quarto ao Lado” venceu o Leão de Ouro no último Festival de Veneza, numa das premiações mais justas dos últimos anos. É possivelmente o melhor filme de Pedro Almodóvar.