ARRIAL DE NAZARÉ

Tradição: De feira regional ao colorido arraial no Círio de Nazaré

Espaço onde funciona, hoje, o parque de diversões e as barracas passou por inúmeras transformações e permanece no imaginário como um lugar de diversão

 Arraial de Nazaré.  . Foto - Wagner Santana/Diário do Pará.
Arraial de Nazaré. . Foto - Wagner Santana/Diário do Pará.

O Arraial de Nossa Senhora de Nazaré foi criado junto à primeira edição do Círio, em 1793. Neste ano, o governador Francisco de Sousa Coutinho instituiu que no dia 8 de setembro fosse inaugurada uma feira de produtos agrícolas regionais de toda a província do Pará, seguida de uma novena com missa cantada e procissão. A feira foi organizada em frente à ermida de Nazaré, onde hoje é a Basílica Santuário, local em que Plácido encontrou a imagem de Nossa Senhora, em 1700, e construiu uma pequena cabana para abrigar a santa.

A feira visava dinamizar e estimular a economia local. Setembro era o mês em que um grande número de devotos, principalmente vindo dos interiores do estado, se reunia no entorno do pequeno templo para agradecer pelo sucesso das colheitas e as graças alcançadas com a intercessão de Nossa Senhora. A atitude do então governador na escolha do mês revela que, já naquela época, a quantidade de devotos de Nazaré era bastante expressiva.

“Segundo Arthur Vianna, o governador garantiu aos expositores barracas para guardar seus produtos e permanecer durante a estada em Belém. Ele recomendava que os diretores das aldeias só permitissem a vinda das índias solteiras em companhia dos pais e das casadas em companhia dos maridos. Chegaram para a primeira feira ou arraial de Nazaré indígenas do interior do Pará, negros e mestiços, para vender produtos como cacau, baunilha, guaraná, urucum, cerâmica indígena, tabaco, redes, pirarucu salgado, peixe boi. A feira foi um sucesso e a procissão, que originou o Círio de Nazaré, também”, relata o historiador Márcio Couto Henrique.

De acordo com o professor, até 1981, o arraial foi realizado no terreno em frente à Igreja de Nazaré, onde ocorriam apresentações de cordões de indígenas e negros, grupos de danças chinesas, polacas e turcas nos coretos, principalmente no chamado Pavilhão Flora. Anos antes, em 1841, a Festa de Nazaré anunciou que nas noites de arraial teria dança de estudantes vestidos de indígenas, dança de mancebos vestidos de pastores, dança chinesa e grupos de anões. Porém, a diretoria fazia uma ressalva: “tem entrada na barraca para gozarem dos divertimentos que ali se vão fazer todas as pessoas que se apresentarem decentemente vestidas”.

“Na década de 1850, o número de diversões já era bem variado. No Círio de 1855, anunciavam que ‘uma companhia de jovens paraenses, vestidos ricamente a caráter índio, se apresentará às 9 horas no Pavilhão de Flora, onde executará diferentes composições recomendáveis na arte da dança, todas otimamente ensaiadas’. Como parte da população do Pará era de indígenas que não viviam nas aldeias de origem, os “tapuios”, é possível imaginar que essas danças fossem executadas por indígenas, que aproveitavam a festa de Nazaré para expressar suas culturas tradicionais”, conta Márcio Henrique.

O Arraial de Nazaré acompanhou as mudanças culturais e sociais da sociedade paraense. Em meados do século XIX e início do século XX, o arraial contava com diversões e vendas de produtos ligados ao espaço rural. Com o início do processo de urbanização, impulsionado pela Belle Époque, o arraial foi se modificando e adotou um caráter mais citadino, com shows, teatro e apresentação de bandas, uma consequência, também, do embate da igreja aos divertimentos populares. Mais recentemente, ele ganhou uma programação musical com cunho completamente religioso e brinquedos mais modernos.

“Com o passar dos anos, foram surgindo, junto à feira, barraquinhas de comidas típicas e, para proporcionar um pouco de diversão aos devotos, foram incluídos na programação jogos, brincadeiras, sorteios, leilões, apresentação de teatro e brinquedos. Esse é o espaço que se chama de Arraial. A feira, juntamente com a procissão, passaram a ser conhecidas como a Festa de Nazaré, organizadas por uma irmandade criada para esse fim, a Irmandade de Nossa Senhora de Nazaré do Desterro”, esclarece/revela o discente do Programa de Pós-Graduação de História (PPHIST) da UFPA.

Desde o início, a Festa de Nazaré é marcada por aspectos religiosos, com as procissões, pagamento de promessas e agradecimento pelas graças alcançadas; mas também é composta por características profanas, como o comércio, as danças populares, venda de bebidas alcoólicas e apresentações culturais diversas. Segundo o historiador Márcio Henrique, essa realidade causava um verdadeiro fascínio nos devotos de Nossa Senhora de Nazaré que, em sua maioria, vinham dos interiores do estado e se deparavam com um cenário de múltiplas experiências na capital.

“Imagine o impacto que estas paisagens exerciam sobre os devotos de Nossa Senhora que se dirigiam ao arraial, muitos deles vindos do interior do estado. Ao voltarem aos lugares de origem, contavam sobre as paisagens que haviam conhecido, as notícias sobre guerras europeias e tantas outras maravilhas exibidas no arraial. Desde o primeiro Círio foi grande a participação de pessoas do interior, presença que crescia a cada ano devido ao que se experimentava nos atos religiosos e no arraial. De ano a ano, o Círio de Nazaré ganhava popularidade e atraía mais gente”, revela o professor da Faculdade de História (FAHIS) da UFPA.

Em 1982, o arraial se mudou para o terreno ao lado da Basílica para a construção do Centro Arquitetônico de Nazaré (CAN), hoje Praça Santuário de Nazaré. “Com o maior controle da igreja sobre a organização do Círio de Nazaré, ocorreu um esvaziamento das tradições populares e o arraial passou a ter um sentido mais religioso. Os padres se incomodavam com a realização do Arraial em frente à Igreja de Nazaré, devido ao barulho, venda de bebidas alcoólicas e pelo vai e vem dos devotos. Até hoje o Arraial continua vivo e, mesmo com outros significados, ainda é marcado pela sociabilidade profana, festiva, característica do modo de expressão da fé em Nossa Senhora”, conclui Márcio Henrique.

ARRAIAL DE NAZARÉ – ITA CENTER PARK – Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Original de Goiânia, o ITA Center Park chega à capital paraense apenas em 1992, quando o parque era montado no estacionamento. Nas primeiras edições, os brinquedos eram montados desde a grade até o final do terreno, que tem acesso à avenida Gentil Bittencourt. Atualmente, ele divide espaço com os stands de venda e permanece por quase 60 dias em Belém. Durante os anos, o parque sofreu muitas modificações e hoje conta com um número ainda maior de brinquedos radicais de fabricação italiana.

“A maioria dos nossos brinquedos são de fabricação italiana. A monta-russa, o Salta Montes, e o Chapéu Mexicano, Ranger são exemplos dos que são produzidos na Itália. Nós nos preocupamos em importar porque a segurança é maior. Com o tempo, os brinquedos vão mudando, hoje temos brinquedos mais radicais. Esse ano são dezenove brinquedos e uma das novidades é a torre que tem 40 metros de altura”, conta Ilson Moreira, proprietário do parque.

MEMÓRIAS

O Arraial de Nazaré faz parte da memória e história não só do Círio, mas da cidade de Belém. Seja a venda de produtos regionais, as brincadeiras de pescaria ou tiro ao alvo e a diversão em brinquedos inéditos e radicais, o parque sempre chamou atenção e curiosidade da população paraense, principalmente dos interiores do estado, que fazia da ida ao Arraial de Nazaré um evento anual obrigatório. Ao longo dos anos, famílias, amigos, devotos e descrentes se reúnem em uma festa dividida entre o sagrado e o profano, em que a fé em Nossa Senhora se mistura às festas, uma forma singular da devoção paraense.

As histórias no Arraial de Nazaré sempre permearam a memória do professor universitário Alexandre Sequeira. Entre as lembranças remotas e as mais vivas, ele relembra que, em meados da década de 1960 e 1970, o parque ficava situado na praça em frente a Igreja de Nazaré, que tinha um desenho arquitetônico modernista com bloquetes e cercada por fossos de espelho d’água. Estrados de madeira eram colocados por cima dessas passagens para que o arraial ocupasse a praça toda com brinquedos de tração manual e barracas de vendas diversas.

Arraial de Nazaré. Foto: Wagner Santana/Diário do Pará.

O parque de diversões sempre foi muito movimentado durante a quadra nazarena. Entre os brinquedos se formavam pequenas vielas por onde os frequentadores transitavam com dificuldade, tendo o risco de se perder de vista. O carrossel, a Barca e a Ola eram as brincadeiras que mais chamavam atenção de Alexandre e da garotada da época. Alguns feitos de madeira, as grandes atrações eram pintadas em cores e estilo parecidos aos brinquedos de miriti e as embarcações paraenses.

“Lembro claramente do carrossel, pintado, inesquecível para quem viveu. Tinham vários animais, leão, ema, zebra, e ficava na praça, em frente a Basílica. Outra coisa eram os brinquedos próximos à samaumeira, um deles a Barca que imitava a estética das pinturas dos brinquedos de miriti e fazia movimento de gangorra, puxado por cordas por dois funcionários. Lembro também da Ola, feita de madeira, e do trem fantasma, que era um clássico do arraial. Também tinha a Monga, que a molecada ia para desafiá-la, mas quando ela virava gorila, era uma debandada, uma graça para quem assistia de fora”, conta o professor universitário.

A regionalidade marcava não somente as estruturas do parque de diversões, mas também a feirinha de ambulantes que rodeava a praça Justo Chermont, onde eram vendidos brinquedos de miriti, muito popular à época, além comidas típicas, pipoca e a tradicional maçã do amor. Brincadeiras de tiro ao alvo e lançamento de argolas eram fruto da “engenhoca popular”, construídas pela inventividade cabocla, longe de traços da industrialização da contemporaneidade.

Durante a adolescência, Alexandre presenciou o início da mecanização e introdução de brinquedos mais radicais. A presença dos Cine Nazaré, Iracema e Cine Ópera aquecia o lado oposto da praça e as transversais do bairro. Com programação sacra, os dois primeiros se rendiam ao clima do Círio, enquanto o terceiro mantinha em exibição os filmes de praxe. Famílias inteiras se organizavam para fazer um passeio completo, que incluía assistir a um filme e, depois, passear no parque.

“Quando adolescente, eu furava o final da aula para ir ao arraial. Nessa época eu lembro do Sputnik que rodava de cabeça para baixo e ficava mais próximo da esquina da Generalíssimo com a Nazaré. Alina naquela quadra tinham os Cine Nazaré, o Cine Ópera e o Iracema funcionando junto com o arraial. Era muito curioso porque o Pacote Arraial contava com a exibição de filmes. As famílias iam ao cinema, às cinco da tarde, e já pegavam o arraial no início da noite. Era uma época que o cinema era um programa planejado pela família. Nessa época, o arraial era muito familiar”, rememora Alexandre Sequeira.

Durante 50 anos residindo no bairro de Nazaré, a professora Ana Claudia Hage acompanhou a evolução e o crescimento do Arraial de Nazaré em todas as fases da vida. Na infância e adolescência, ela frequentou o parque de diversões quando ainda era montado na praça em frente à Basílica. A montanha-russa, a xícara, a barca e o carrossel, além da venda das tradicionais bolas e artigos de miriti, eram as brincadeiras mais memoráveis em uma época com menos brinquedos radicais.

“Eu não esqueço do único carrossel no meio da praça. Também tinha uma barca, a xícara, o carrossel e a roda gigante. Não tinha tanto brinquedo radical como hoje, então esses realmente foram os que mais me marcaram, eu sempre queria ir. Na minha época era uma coisa mais pacata, a gente comprava os brinquedos de miriti e enchia a casa. O meu pai, por ser professor de história, contava histórias de cada coisa que a gente vivia no Círio e isso me marcou muito, era muito interessante”, relembra a professora da UEPA.

À época, ir ao arraial tinha um caráter de merecimento por se ter comportado durante o ano. Com o tempo e a chegada dos filhos, foi a vez deles aproveitarem o parque. Hoje é a neta que aproveita a diversão. “Posso dizer que todas as fases da minha vida, na infância, adolescência e vida adulta, acompanhei a evolução do arraial. Quando era criança, era uma alegria ir ao parque porque era com uma recompensa pelo bom comportamento, então tínhamos que manter a disciplina. Depois de alguns anos, eu passei a não aproveitar mais o parque, mas levar meus filhos e ano passado eu já levei minha neta. São várias gerações que vivenciaram o Arraial de Nazaré”, finaliza Ana Claudia Hage.