Os idosos, famílias com crianças e pessoas com deficiência e comorbidades que estavam no Líbano e foram repatriados pelo governo brasileiro demonstravam alívio, mas também preocupação com os familiares e amigos que deixaram para trás ao desembarcarem na base aérea de Guarulhos (SP) neste domingo (6).
A última vez em que Israel invadiu o Líbano por via terrestre foi em 2006. Segundo dados oficiais, a incursão deixou 1.191 mortos, a maioria civis. O ataque atual, dizem os repatriados, parece ainda mais destrutivo.
Jussara Kdouh, 34, era adolescente no último conflito entre Israel e o Hezbollah. “Em 2006, foi difícil também, mas desta vez foi muito pesado. Eles não levam em consideração inocentes. Onde tem alvo para atacar, atacam. Pode morrer muitas pessoas, não se importam”, disse à Folha.
Apesar de ter permanecido no Líbano em 2006, agora, com dois filhos, decidiu deixar o país –a mãe, que também ficou em Beirute no conflito anterior, acompanhou-a desta vez.
Kdouh diz não saber se ainda tinha casa no país. “Deixei a geladeira cheia, a comida na pia, tudo.”
O mesmo aconteceu com o casal Jaline Abou Arab, 54, e Fauzi Abou Arab, 64. Em 2006, relata a mulher, ela até cogitou ir para a Síria com os filhos pequenos, mas permaneceu no Líbano. Desta vez, achou perigoso demais continuar lá. “As bombas vêm de cima para baixo”.
Carla Araújo conta que se mudou da Angola para o Líbano, país de nascimento do marido e pai dos seus dois filhos, em agosto do ano passado, a fim de conseguir melhor educação para o filho no espectro autista.
A guerra em Gaza começou logo depois da mudança –mas ela não se preocupou, nem na época nem quando Israel começou a investir contra o Líbano. “Eu não queria sair da minha casa. Dizia: ‘Ninguém vai jogar bomba aqui em Beirute’. Aí caiu a primeira bomba a dez minutos de onde moro.”
Araújo se refugiou nas montanhas com os sogros e os filhos –o marido mora em Angola. Quando voltou para casa, as janelas estavam estilhaçadas e havia objetos quebrados no chão, porque uma bomba atingiu o lado oposto da rua. “Minha sogra mora a cinco minutos de mim. Dois prédios vizinhos ao dela caíram”, afirma.
“Meus sogros estão começando a ficar assustados. Diziam: ‘Não é nada, em 2006 não foi nada. Passamos 33 dias fora de casa, só quebrou uma coisinha lá na cozinha’. Mas agora estão com medo mesmo”, prossegue ela.
Um dos primeiros passageiros do voo da FAB a desembarcar no aeródromo em Guarulhos (SP), o estudante Karim Halawy, 21, conta que tinha acabado de chegar no Líbano quando a capital, Beirute, foi alvejada pela primeira vez.
“Ia voltar em novembro, mas Israel interrompeu as viagens e eu fiquei preso lá”, disse. “Eu vi a morte literalmente na minha frente. Ouvi as bombas por perto, coloquei as mãos na cabeça, chorando, esperando que a casa caísse em mim”, disse.
“A gente está vivo, graças a Deus. O medo passou, agora já estamos no fácil”, completou o estudante, vestido com uma camisa da seleção brasileira.
Nessryn Khalaf, 28, também diz que nunca imaginou que viveria uma guerra nessas proporções. “Assistia sobre isso em filmes, lia sobre, mas quando chegou a nossa hora, eu não esperava”, afirma.
No sábado, ela compartilhou nas redes sociais um vídeo do seu percurso até o aeroporto em Beirute. Nele, via-se a fumaça causada por um bombardeio de Israel sobre território do Líbano na noite anterior.
“Está começando a faltar medicamento, água, comida. Bombardearam a estrada que leva à Síria, então quem estava saindo dessa forma não consegue mais, está preso”, prossegue.
Ela veio ao Brasil com a mãe e a irmã. O pai precisou ficar para cuidar da avó, que está doente e não consegue sair de casa. “Neste voo, que a gente ficou sem internet por 11 horas, tive um ataque de ansiedade porque estava com muito medo que tivesse acontecido alguma coisa com eles. E acho que eu vou ficar assim o tempo inteiro aqui também.”
O Líbano vem sendo afetado de maneira cada vez mais ampla pela escalada do conflito. Após duas semanas de ataques aéreos que dizimaram a cúpula do Hezbollah, o Exército de Israel iniciou um ataque terrestre contra o grupo rival no sul do Líbano.
Diante do aumento das tensões, o governo Lula anunciou o início da operação de repatriação, nos moldes do que ocorreu após os ataques terroristas do Hamas contra Israel em outubro do ano passado. Na ocasião, mais de 1.400 pessoas foram repatriadas de Israel, da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
Segundo o chanceler Mauro Vieira, atualmente cerca de 20 mil brasileiros vivem no Líbano, além de cidadãos que estão visitando o país. Pelo menos 3 mil requisitaram repatriação até o momento.
O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Marcelo Damasceno, estimou que a FAB tem capacidade para repatriar cerca de 500 brasileiros por semana, com modelos KC-30 e KC-390. O próximo grupo, segundo ele, deve chegar na terça-feira (8).