UM RISCO CHAMADO "BET"

Apostas viram problema social no país e um caso de polícia

As chamadas “bets” ainda precisam de maior controle para evitar endividamentos, que já atingem até os beneficiários do Bolsa Família.

Foto: Ricardo Amanajás / Diário do Pará
Foto: Ricardo Amanajás / Diário do Pará

Um mal tão contagioso e que se alastra tão rápido, a ponto de ter sido comparada com a pandemia da Covid 19. Os jogos de apostas online, conhecidas como “bets”, já não são mais relacionadas a um nicho específico ou a uma determinada classe social. De acordo com uma pesquisa de opinião do Instituto Locomotiva realizada em agosto deste ano, nos primeiros sete meses de 2024, 25 milhões de pessoas no país passaram a fazer apostas esportivas em plataformas eletrônicas, uma média de 3,5 milhões por mês. Modalidade legalizada no Brasil desde 2018, a prática envolve uma série de riscos, que vão desde questões jurídicas, de endividamento pessoal e até mesmo de saúde mental.

Para se ter uma ideia do tanto que a questão se tornou uma problemática social, o governo brasileiro deve anunciar na próxima semana uma forma de vetar o uso dos recursos do Bolsa Família, que é um programa de transferência de renda criado para garantir segurança alimentar e atender necessidades básicas de pessoas em situação de vulnerabilidade, pelos seus beneficiários. Informações do Banco Central dão conta de que esse público gastou R$ 3 bilhões com apostas online só neste mês de agosto.

Até mesmo estudiosos da Neurociência já se debruçaram sobre o tema, e entenderam que as bets são perigosas porque criam um ciclo vicioso impulsionado por neurotransmissores como a dopamina e a adrenalina. Cada aposta envolve uma expectativa de ganho, e mesmo as perdas aumentam o desejo de continuar apostando para tentar recuperar o dinheiro. Esse ciclo se intensifica quando o apostador opta por correr maiores riscos.

É justamente esse comportamento de risco que pode ser considerado especialmente problemático, dado que a sensação de vitória iminente, mesmo que improvável, motiva apostas cada vez mais ousadas, levando muitos a perdas significativas e ao vício.

Em 2018 foi promulgada a Lei 13.756, que teve o objetivo de autorizar e regulamentar apostas esportivas no Brasil. A matéria tratou das apostas como uma modalidade de loteria, liberada tanto para o setor público quanto para o privada. Entretanto, não definiu critérios, condições e procedimentos específicos para a sua regulamentação. Em 2023 foi promulgada a Lei 14.790, que ampliou o alcance da legislação, exigindo que as empresas tenham endereço no Brasil, definindo a tributação e incluindo os jogos online.

Willibald Neto, advogado com atuação no Direito Penal. Foto: divulgação

Advogado com atuação no Direito Penal, Willibald Neto avalia que o grande problema é que ambas as legislações não conseguem acompanhar a velocidade do modo de disseminação das apostas online, ou os desdobramentos relacionados à prática. “Legalizou-se uma atividade, mas não trataram sobre sua forma de fiscalização, quem vai poder operar nessa indústria, como proteger a integridade do esporte e a conformidade com o negócio, e, além de tudo isso, como mitigar os danos causados à saúde pública, considerando que a aposta vicia, principalmente em uma modalidade online que está disponível para todos e na palma da mão”, justifica.

O advogado pontua ainda que toda empresa, além de gerar lucro para os donos, deve cumprir sua função social. Então no caso das apostas, a lei deveria tratar não apenas do pagamento de imposto sobre a atividade, mas também obrigar a implementação de medidas voltadas à prevenção do vício entre apostadores por meio da conscientização de que os jogos são para entretenimento, não para enriquecimento.

NÃO É SÓ UM JOGO

“Para se ter uma ideia, o Banco Central fez um levantamento, feito a pedido do senador Omar Aziz (PSD-AM), em que se identificou que os brasileiros gastaram cerca de R$ 20 bilhões por mês em apostas online nos primeiros oito meses de 2024. Segundo o estudo, cerca de 24 milhões de pessoas fizeram ao menos um Pix para as bets no mesmo período. E uma parte considerável está entre os beneficiários do programa bolsa família”, destrincha Willibald.

Em entrevista à NovaBrasil FM sobre bets esportivas, a neurocientista Carla Tiepo destacou que esse tipo de aposta é particularmente atraente para homens entre 20 e 30 anos, sendo que as apostas começam pequenas, mas crescem conforme a faixa etária aumenta. E que muitos apostadores em situação de vulnerabilidade financeira acabam arriscando grandes quantias, acreditando que seus conhecimentos esportivos podem ser a chave para ganhar.

“O fascínio pelo controle e pelo conhecimento pode enganar, levando muitos ao vício e a perdas financeiras significativas. Então ao perceber que as apostas estão indo além do entretenimento e começando a ocupar um espaço perigoso na vida financeira e emocional, é hora de puxar o freio de mão e buscar ajuda”, comentou.

ILEGALIDADE

Willibald Netto explica que o artigo 50 da Lei das Contravenções Penais (Lei n. 3.688/41) pune a conduta de estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele. Ocorre que existem jogos de aposta online que não se enquadram nesse tipo penal e ao mesmo tempo, por não terem representação no Brasil, não se encaixam nas duas legislações já citadas ou seja, encontram-se em um limbo jurídico. Daí a necessidade de regulação por lei específica.

Ele dá como exemplo o famigerado “Jogo do Tigrinho”, que está em uma categoria que pode ser operada por sites de apostas, desde que cumpridos alguns requisitos legais, como informar previamente ao jogador o fator de multiplicação do prêmio em caso de ganho na aposta. Ou seja, o apostador sabe antes o quanto pode receber. Pela legislação que dispõe sobre a regulamentação desses jogos online, após estabelecidos critérios técnicos e jurídicos, os jogos deverão ser submetidos à certificação realizada por entidades habilitadas.

“Espera-se que o mercado seja melhor regulado, quando os sites legais poderão apenas oferecer jogos online certificados, auditáveis e sem manipulações que prejudiquem o apostador”, atenta o advogado, lembrando ainda que, sobre a punição de donos, administradores e colaboradores de empresas de apostas voltadas à prática de crime, a legislação brasileira possui diversas possibilidades.

A polícia brasileira tem deflagrado diversas operações motivadas por inúmeros indícios de prática de crime, autoria e materialidade, sobretudo no que tange aos influenciadores (“influencers”) que divulgam os jogos de azar e que possuem conhecimento prévio de que a versão que compartilham na internet com os seguidores é uma versão demonstração (“demo”), que está programada para conseguir a combinação necessária para obter ganhos financeiros. É por isso que eles podem acabar responsabilizados criminal e civilmente por eventuais problemas que os jogadores tenham enfrentado com as plataformas. “O importante é analisar a existência, ou não, de dolo, que é a vontade livre e consciente de agir na prática do crime, ou até mesmo um dolo eventual, no caso quando se assume o risco”, avalia.

A advogada criminalista e influenciadora Deolane Bezerra passou 20 dias presa acusada de lavar dinheiro por práticas de jogos de azar. Já o cantor sertanejo Gusttavo Lima teve pedido de prisão preventiva decretada no dia 23 de setembro por suspeita de envolvimento em esquema de bets, mas a revogação veio no dia seguinte em atendimento a pedido de habeas corpus.

Punição não resolve se não houver fiscalização eficiente

Para o Direito Penal, influenciadores digitais ou qualquer pessoa que trabalhar e/ou divulgar jogos de azar podem responder por crime contra as relações de consumo e contra o consumidor, que pode levar à detenção de dois a cinco anos, ou multa; crime contra a economia popular, com detenção de seis meses a dois anos e multa; propaganda enganosa, com previsão de detenção de três meses a um ano e multa; sonegação fiscal, podendo ocorrer detenção de seis meses a dois anos, e multa; estelionato, com reclusão, de um a cinco anos, e multa; e organização criminosa e lavagem de dinheiro.

“O grande problema é a questão da lavagem de dinheiro. Sem legislação voltada a regular a fiscalização e movimentação das empresas que trabalham nesse ramo, é possível que a atividade seja utilizada para legalizar valores advindos de outros crimes. O mesmo que acontece com o conhecido jogo do bicho. Entretanto, no caso das apostas online, em virtude de sua natureza cibernética, o dinheiro sempre vai deixar rastro, sendo de fundamental não apenas a regulação, mas também o aparelhamento dos órgãos de segurança para que eles consigam investigar a alta demanda de ocorrências”, conclui o advogado.