LUTO

Paulo Faria, uma existência dedicada à teatralidade da vida real

Produtor, cenógrafo, ator, diretor, dramaturgo, o paraense Paulo Faria encerrou precocemente sua trajetória na madrugada de segunda-feira

Produtor, cenógrafo, ator, diretor, dramaturgo, o paraense Paulo Faria encerrou precocemente sua trajetória na madrugada de segunda-feira
Produtor, cenógrafo, ator, diretor, dramaturgo, o paraense Paulo Faria encerrou precocemente sua trajetória na madrugada de segunda-feira

Produtor, cenógrafo, ator, diretor, dramaturgo, o paraense Paulo Faria encerrou precocemente sua trajetória na madrugada de segunda-feira, 16 de setembro, aos 59 anos de idade e quase 45 de carreira, por suspeita de mal súbito fulminante.

Morador do distrito de Mosqueiro, em Belém, desde 2022, para onde voltou depois de três décadas morando em São Paulo (SP), o fundador da companhia de teatro “Pessoal do Faroeste” sai de cena deixando um legado de autor e encenador reconhecido e premiado, e pelos amigos e parceiros de trabalho sempre reconhecido como alguém que fez da generosidade e da arte instrumentos para salvar vidas.

Esta semana seria empossado presidente da Associação Paraense de Teatro, um feito que, segundo pessoas próximas, era para ele motivo de muito entusiasmo e de sonhar novos sonhos. Só que Paulo não compareceu à reunião que confirmaria a posse, na segunda-feira mesmo, pela parte da tarde, e nem avisou nada, o que levantou a suspeita de que algo poderia ter acontecido.

O corpo foi levado ao Instituto Médico Legal (IML) na tarde desta terça, 17, e a expectativa de liberação é para quarta-feira, 18. O velório, ainda sem hora marcada, será no teatro Waldemar Henrique, na Praça da República – onde inclusive ele participaria esta semana de programação alusiva ao aniversário de fundação do local, que foi cancelada em função do falecimento (leia nota ao final da matéria).

Amiga próxima do artista, a atriz Yeyé Porto foi à casa de Paulo na manhã de terça, 17, acompanhada da filha, atriz e encenadora Luciana Porto, e da também atriz e autora Margaret Refkalefsky, já que não conseguia contato com ele por telefone. Logo cedo elas conseguiram contato com uma vizinha, que informou que a casa estava aberta, mas ninguém atendia quando ela chamava.

Ao chegarem, acionaram a Polícia Militar para entrar no imóvel, e lá encontraram o ator e diretor já sem vida, caído na cozinha, em um cenário que sugere infarto ou algo semelhante. Como ele morava somente na companhia de seus animais de estimação, a morte será investigada pela Polícia Civil.

“Os policiais atestaram que ele havia falecido. Não havia nenhuma marca, nenhum baque, e tanto a PC quanto PM vão investigar, mas a conclusão inicial seria de mal súbito, infarto”, detalhou a amiga. “Foi uma das criaturas mais generosas que já conheci. Artista que, pela arte, muitas vidas ele salvou, muita fome ele evitou. Tinha um coração enorme. Em São Paulo, pelo ‘Pessoal do Faroeste’, na época da pandemia, ele deu muita alimentação a moradores de rua, para animais também. Ele tinha 13 cães e três gatos na casa onde morava e estava fazendo um trabalho muito bonito aqui no Mosqueiro na recuperação de pessoas com problemas de uso de drogas, adictos, e também cuidando dos animais. Ia assumir a Associação Paraense de Teatro, ia começar a ensaiar um espetáculo solo, com a direção de Geraldo Sales, estava muito cheio de sonhos e de coisas a fazer”, contou Yeyé.

Em maio deste ano, Faria foi o homenageado do 10º Seminário de Dramaturgia Amazônida, promovido pela Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA), momento em que pôde celebrar seu retorno à cidade onde nasceu, segundo ele mesmo, retorno esse motivado pelo resgate de sua própria identidade amazônida e do reencontro com sua família – ele é filho do ex-prefeito de Santarém, Elias Pinto, falecido em 1985, sendo o caçula de uma família de sete irmãos, estando dentre eles os jornalistas Lúcio Flávio Pinto e Elias Pinto.

Para uma entrevista concedida ao DIÁRIO na época, contou que estava para lançar três romances, e o primeiro “Arigós: Aconteceu na Amazônia”, foi disponibilizado em junho no formato de e-book.

‘Pessoal do Faroeste’, o legado de Paulo Faria

Começou no teatro em 1979, na capital paraense mesmo. Mudou-se para São Paulo dez anos depois, onde cursou Letras na Universidade de São Paulo (USP). Em 1998 fundou aquele que seria um de seus maiores legados, a “Pessoal do Faroeste”, pela qual escreveu e dirigiu cerca de 20 de peças, várias delas premiadas. Tornou-se um dos nomes mais representativos do teatro paulistano, sobretudo por seu envolvimento com a história e as questões sociais da cidade. Durante anos manteve seu teatro no meio da Cracolândia.

Em entrevista ao portal “Bom Dia Europa” concedida em 2019, Paulo Faria contou que estava para terminar a graduação na USP, em 1996, e em breve assumiria a direção do teatro da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), na capital paulista. A morte do cantor Renato Russo naquele mesmo ano mudou o rumo dessa história, porque a mudança para SP envolvia o sonho de encontrar o músico e com ele discutir a adaptação da antológica canção “Faroeste Caboclo” para musical, com o ex-líder da Legião Urbana fazendo as músicas.

“Já estava há mais de cinco anos em São Paulo e mergulhado na vida acadêmica, me distanciando do sonho. O Renato Russo morreu. Abandonei tudo e fui montar ‘Um Certo Faroeste Caboclo’. Ali falava de Brasil, política e juventude. Ficamos quase quatro anos em cartaz, apresentando o espetáculo em quadras de esportes ou em salas como a Adoniran Barbosa, do Centro Cultural São Paulo, para quase mil pessoas. Viajamos o Norte e o Nordeste. Tínhamos um bom contato com o público e via como ele se interessava pelo tema político”, relatou.

A experiência bem sucedida e acesso a editais de fomento deu seguimento à atividade da companhia de teatro, que se mudou para a região da Luz no início dos anos 2000. “Fui me envolvendo e militando na defesa dos seus habitantes excluídos”, explicou, na mesma entrevista.

Paulo Faria é um dos grandes nomes da cena teatral brasileira. Foto: Divulgação

Para democratizar o acesso e ajudar os moradores do entorno, os ingressos eram envelopes entregues ao público para serem devolvidos ao final do espetáculo, com contribuição voluntária. “Quem pode, paga por quem não pode”, defendia. Não adepto de espetáculos politicamente corretos, Paulo Faria acreditava que a grande dramaturgia é a que trata das mazelas humanas, de temas universais. “Acredito na força divina e humana da arte. E arte é também entretenimento, mesmo quando seja pouco palatável, inacessível. A vida precisa de mais alegria, de poesia. Precisamos comer arte. Uma outra forma de consumo”, declarou ao portal.

Em 2019, recebeu da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos. Em 2020, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos Franz de Castro Holzwarth, da OAB, pelo trabalho que desenvolveu por 20 anos na Cracolândia.

Elias Pinto conta que a pandemia da Covid 19 atingiu o irmão duramente, como ocorreu com quase toda a cena teatral no Brasil. Por ter um trabalho sempre voltado a questões sociais, passou a atuar ajudando quem sofria tanto ou mais do que ele em um momento em que tudo parou.

“Ele sempre desenvolveu seus trabalhos na área central de São Paulo. Isso o levou a conhecer melhor a problemática daquela área, as pessoas que ali viviam, o próprio Boca do Lixo, onde ele estava, tudo isso ele começou a estudar e trazer para o teatro dele. Quando começou a pandemia, ele se reinventou usando a sede do teatro para ajudar prostitutas, distribuir comida e passou a receber doações. Com isso ele ganhou destaque na Folha de São Paulo e outras publicações paulistanas”, relembra.

Antes de entrar em uma van com 13 cães e sete gatos para voltar à cidade Natal, há dois anos, ainda tentou viver em Jundiaí (SP) depois que, mesmo entregando seu apartamento e indo morar no próprio teatro, não conseguiu mais se sustentar. Para a viagem de mais de três mil quilômetros, contou com ajuda financeira de ONGs ligadas à causa animal, já que todos os que vieram com ele foram resgatados.

“Ele inclusive tinha um sonho de reproduzir essa odisseia cheia de acontecimentos. Chegou a produzir textos sobre isso, mas ele queria fazer mais, dar o testemunho do que ele viveu. Em tudo o Paulo sempre dava coloração cênica, transformava tudo em arte, sempre”, comove-se o irmão.

A atriz gaúcha Mel Lisboa era uma das integrantes da “Pessoal do Faroeste”, e nesta tarde ela postou em seu perfil no Instagram uma homenagem referindo-se a Paulo como “mestre”. “Aprendi tudo com você: teatro, política, cidadania, amar o Pará e o centro de São Paulo. Obrigada por tudo. Pena não podermos seguir com os nossos muitos planos de muitos outros projetos. Espero que, onde estiver, esteja fazendo a festa que sempre gostou de fazer. Te amo pra sempre”, escreveu como legenda de uma foto em que aparece abraçada ao dramaturgo. Nos comentários, atrizes como Virgínia Cavendish, Adriana Lessa, Karine Carvalho e Bárbara Bruno lamentaram a perda.

O irmão de Paulo inclusive revela que Paulo e Mel tinham planos de trabalhar juntos em Belém durante a 30ª Conferência das Partes, a COP 30, que será realizada em Belém no fim do ano que vem. “Ele estava em plena produção, Paulo não parava. Em Mosqueiro ele fazia algo semelhante ao que fez pelo ‘Faroeste’, lá no Carananduba, onde ele morava. Dava aulas de teatro, interpretava, tudo muito no improviso, mas o teatro para conscientizar as pessoas, trazer pra novas etapas sempre foi esse o objetivo dele. Mesmo com as dificuldades de ir e vir, as dificuldades financeiras”, reconhece.

Em seu blog, Lúcio Flávio Pinto repudiou a perda do caçula, demonstrando incredulidade com a partida súbita. “Morte ingrata, cruel, revoltante. Paulo estava começando nova etapa na sua vida e na carreira múltipla, reconhecida e premiada, graças ao seu talento como escritor, teatrólogo, diretor, encenador e um ativista de causas nobres, no Pará, em São Paulo e por outros recantos do Brasil”, postou.

Ator, encenador, pesquisador e professor da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (EDTUFPA), Alberto Silva Neto conta ter acompanhado a trajetória de Paulo Faria desde a década de 80. “Em Belém, passou por todos os grupos mais importantes da cidade. Fez um trabalho lindíssimo na década de 90, em SP, aproximando teatro e sociedade, investindo e dedicando a vida dele a uma missão social cênica. Então o legado de Paulo é imenso”, afirma.

Nos anos 90, o perfomer e cenógrafo Nando Lima trabalhou com Faria em “Um Certo Faroeste Caboclo”. “Fiz a cenografia e o figurino da peça. E esse espetáculo deu origem ao ‘Pessoal do Faroeste’, que por mais de 20 anos teve sua sede na Luz, em São Paulo. E que se pautava por ser um espaço engajado nas lutas mais íngremes da sociedade. Era uma pessoa que jorrava ideias, e não media esforços para realizá-las. Um grande agitador cultural que fará falta”, comentou.

PESAR

  • A Fundação Cultural do Pará divulgou nota de pesar pelo falecimento do dramaturgo paraense Paulo Faria, indicando-o como “importante pilar na construção da cena artística paraense”. A FCP informou ainda a suspensão da programação alusiva ao aniversário do Teatro Experimental Waldemar Henrique, que ocorreria ontem (17) e hoje (18), a ser remarcada posteriormente. Paulo inclusive era participante de uma das atividades de terça, a roda de conversa com o tema “Narrativas e Vivências” com mediação do doutor professor Ysmaille Ferreira e participação de Margaret Refkalefsky, Zélia Amador, Igor Marques, Elói Iglesias e Márcia Freitas.
  • A comunidade da EDTUFPA também emitiu comunicado lamentando a perda. “Desde o início da década de 1980, ele construiu admirável trajetória artística, primeiramente em Belém e depois em São Paulo, onde realizou ações importantes no diálogo entre teatro e sociedade. Em maio deste ano, tivemos a honra de homenageá-los em nosso X Seminário de Dramaturgia Amazônida. Consternados e irmanados neste momento de dor, nos solidarizamos com familiares, amigos e colegas de profissão. Ao mesmo tempo, celebramos com orgulho o importante legado deste grande Homem de Teatro que foi Paulo Faria”.