Cintia Magno
O início do processo de urbanização da cidade de Belém está intimamente ligado às instalações oficiais e de congregações religiosas que se estabeleceram no território durante o período colonial. Entre as primeiras ruas abertas no que foi o núcleo inicial da cidade, a antiga Rua do Espírito Santo, hoje Rua Doutor Assis, demonstra bem essa característica.
Ainda hoje, é possível observar claramente como a segunda rua da cidade inicia seu traçado a partir do antigo Largo da Matriz (hoje Praça Frei Caetano Brandão), espaço amplo que abrigava desde as primeiras edificações da Igreja da Sé, além do próprio Forte do Presépio.
Segundo aponta o engenheiro e historiador Augusto Meira Filho em “Evolução Histórica de Belém do Grão- Pará”, no final do século XVII, Belém já se firmava como cidade e os relatos históricos apontam que, desde aquela época, o seu traçado urbanístico partia justamente dos largos fronteiros às instalações religiosas, irradiando em direção ao interior do território.
Dessa forma, Augusto Meira Filho estabelece que em seu primeiro período de desenvolvimento, Belém vivenciou um processo de evolução urbana que se estruturou a partir de cinco grandes núcleos: o próprio largo da Matriz (em torno da Igreja da Sé) como o primeiro centro de irradiação da cidade; o largo de São João (em torno da Capela de São João); o largo de Santo Antônio (nas imediações da Igreja de Santo Antônio); o largo do Carmo (Igreja do Carmo) e o largo das Mercês (Igreja das Mercês).
Não à toa, a atual Rua Doutor Assis está ligada justamente a esse primeiro centro de irradiação, o Largo da Matriz. A historiadora Dayseane Ferraz explica que ‘largo’ é uma denominação vinda de Portugal e que se referia a esses lugares mais amplos que se configuravam como espaços de consolidação e legitimação da posse do território, mas também como espaços de sociabilidade das cidades.
“É importante a gente pensar que quando os portugueses chegaram, o Castelo Branco e mais cerca de 200 soldados, até a consolidação desse processo de ocupação e conquista, o núcleo original da cidade foi no entorno do Forte do Presépio. As casas foram se formando ali depois de cessado o primeiro contato e o confronto com os Tupinambá que habitavam a região. Então, o primeiro largo surge no entorno da Igreja da Matriz, que inicialmente era uma capela construída ainda dentro do Forte do Presépio”, explica.
“A partir do largo da Matriz, tendo como norte a edificação oficial, que era o Forte do Presépio, e a edificação religiosa que era a própria Catedral de Belém, você tem ali um raio de ação em que a primeira rua, de fato, foi a Rua do Norte (Siqueira Mendes) e a segunda rua foi a do Espírito Santo (Dr. Assis)”.
A professora aponta que no livro “Ruas de Belém”, o historiador Ernesto Cruz diz que essas ruas começaram a ser abertas ainda no século XVII, após a construção do Forte do Presépio. “Ele diz que a partir de 1621 começa o processo de abertura de ruas, rasgando primeiro as três principais ruas, que são as que partem do Forte do Presépio, entre elas, a Dr. Assis. Então, forma-se esse leque e o que o Ernesto Cruz diz para gente é que essas ruas geralmente tomavam por nome alguma edificação pública, alguma das igrejas, ou o nome do morador que tivesse mais notoriedade, que fosse mais conhecido”.
Fazendo referência justamente a um político influente à época, a antiga Rua do Espírito Santo passa a ser chamada pelo atual nome de Doutor Assis em meados do final do século XIX. “É a segunda rua aberta em Belém, que passa pela lateral da Igreja Matriz. Primeiro foi chamada de Rua do Espírito Santo e depois de Dr. Assis, segundo Ernesto Cruz, a partir da referência a esse jornalista que tinha como princípios na vida política os ideais republicanos. Ele foi político, jornalista, republicano e, tanto por isso, a partir do final do século XIX e início do século XX deu o nome à rua”, aponta Dayseane.
“É muito legal que a gente pense que essa mudança nos nomes das ruas carrega também uma mudança de memória na história da cidade. Se a gente for marcar esse lugar de memória, então, a gente tem a Rua do Espírito Santo como a segunda rua aberta desde o período colonial e que a partir do século XIX para o XX, assume o nome de Dr. Assis”.
Quando a família de Ana Brahuna dá início à instalação da tradicional Fábrica de Velas São João, já na primeira metade do século XX, a rua já detinha a denominação de Dr. Assis. Ainda assim, as mudanças sofridas no cenário da rua foram muitas e podem ser evidenciadas em alguns registros históricos, como na fotografia feita pelo americano Robert Larimore Pendleton em 1949, obra que integra o acervo da Universidade de Wisconsin, nos EUA.
Na foto em preto e branco, ainda é possível ver a rua formada por paralelepípedos e marcada pelos trilhos do bonde, assim como uma antiga placa da Fábrica São João, que até hoje mantém suas instalações na Rua Dr. Assis.
“Tenho muitas memórias porque eu tenho 65 anos e nasci aqui, em um casarão próximo da fábrica, na Dr. Assis mesmo. Os postes eram de ferro e, no dia 31 de dezembro, a gente batia para anunciar o ano novo”, aponta, ao falar de memórias mais recentes que ela própria cultivou desde a infância. “Logo no início, as entregas eram feitas nessas carroças, como na foto. Depois que meus tios compraram o primeiro carro para fazer as entregas”.
Além da própria fábrica, outras construções seguem marcando a história da Rua Dr. Assis, como o próprio Palacete Pinho, remanescente dos tempos áureos da Belle Époque e que atualmente passa por obras de restauro.
Outra construção histórica e que, inclusive foi tombada pelo Iphan em 1944, é um antigo palacete localizado na esquina da rua Doutor Assis com a travessa Dom Bosco, conhecido como Palácio Velho. De acordo com os registros da revista nº 10 do Iphan, a construção serviu de residência governamental e de sede do executivo paraense em uma fase do período colonial.