Entre os mais de 90 trens de alta velocidade que ligam Pequim e Xangai diariamente, a linha considerada “lendária” pelos próprios relatos chineses é a G28. Sai às 19h de Xangai, maior cidade do país, e chega à capital às 23h18, a tempo de pegar o metrô para casa.
Leva chineses e chinesas com “aura de trabalho” ou cheiro, 班味儿, o tópico que se firmou em rede social para descrever os efeitos físicos de tamanha dedicação ao serviço, a começar da fisionomia de exaustão e da falta de maquiagem.
Um relato em agosto na plataforma Weixin (WeChat), com grande repercussão, dizia que a aura ou o cheiro era maior no trem entre as duas cidades do que nos escritórios. Foi na G2, a linha que sai às 7h de Pequim para Xangai.
“Assim que o trem partiu, havia só o barulho de teclados, o som de teleconferências e notificações”, começava o texto do perfil Renwu. “Após uma hora, era possível dizer quem ao redor estava usando o Feishu da ByteDance ou o DingTalk do Alibaba [plataformas de colaboração corporativa], quem tinha vantagem nas negociações e quem estava só seguindo ordens.”
Mais à frente, “a atendente do trem veio com um carrinho, mas em vez de gritar ‘lanches, bebidas, água mineral’, ela ofereceu, ‘café?’. Naquele momento, pensei comigo: o ‘cheiro de trabalho’ neste trem está forte demais”.
A reportagem embarcou na G28 no dia da volta às aulas, terminado o verão, segunda-feira, 2 de setembro. Um homem de 38 anos estava sentado ao lado da janela, notebook aberto, escrevendo. A tela de fundo era com uma menina de cerca de dez anos, sua única filha, como contou depois.
Questionado sobre o vagão quase lotado, comentou que normalmente, na verdade, havia até mais passageiros. Engenheiro do setor automotivo da Xiaomi, encarregado do desenvolvimento de fios e cabos para o carro elétrico lançado cinco meses atrás, o bem-sucedido SU7, ele viaja duas vezes por mês a Xangai, para reuniões, “só de trem”.
E de segunda classe, que não é muito diferente da primeira, mas bem distante da classe “business”, quase leito, três vezes mais cara.
Conor, seu nome ocidental dado por um professor, comenta com orgulho nacionalista o “trem de alto nível, o assento confortável, o silêncio”, enfim, as condições para ele trabalhar em paz no início da noite. Também cita o tempo menor gasto no trajeto, em comparação com a ponte aérea.
São 4 horas e 18 minutos de viagem quase expressa no trem, com uma só parada, enquanto o voo toma 2 horas e 15 minutos, mais as 2 horas de presença antecipada exigida pelo aeroporto para a longa inspeção de segurança, além da distância para chegar até ele.
Questionado sobre estar trabalhando tanto e sobre ter optado pela segunda classe, respondeu: “Eu acho que os chineses gostam de trabalhar e vão gastar pouco com algo pessoal. Na minha visão, o trabalho é muito importante para mim, no alto da lista, pela minha família”.
O especialista em ferrovias David Feng ou Feng Yan, suíço de família chinesa, baseado em Pequim, só viaja de “business”, mas, acrescenta ele, “sem nunca deitar, sempre trabalhando, de um jeito ou de outro”. Ele escreve sobre trens e viagens, também no WeChat.
“Estive por toda a rede na China”, conta. “Este fenômeno [pessoas trabalhando] é sentido particularmente em algumas linhas, mas não é exclusivo. Em geral, acontece nas conurbações, entre Xangai e Pequim, Pequim e Tianjin, Xangai e Nanjing também na linha local.”
Não existem as restrições dos aviões, por exemplo, ao acesso à internet, “então as pessoas aproveitam para ser produtivas, bastante”. Ajuda também o fato de poderem chegar à estação em cima da hora, “dez minutos antes, se você viajar de business”.
Ele diz que, neste momento, “a maior notícia no mundo dos trens chineses de alta velocidade” é que o aguardado modelo CR450 está próximo da estreia comercial. A expectativa é que comece entre Pequim e Xangai em 2025, quando reduziria a viagem para 2 horas e meia, segundo jornais chineses.
Feng diz que não será bem assim, que o trem alcança 450 quilômetros por hora, como indica o nome, mas deve se limitar a 400 no uso cotidiano. A G28 e outras linhas de tempo semelhante usam o Fuxing, considerado o trem de passageiros mais rápido do mundo em uso regular, que estreou em 2017 entre Pequim e Xangai.
Ele alcança 350 quilômetros por hora, mas fica em 300 no uso cotidiano. A exemplo do CR450, foi desenvolvido pela CRRC -o gigante chinês escolhido neste ano para construir e equipar a ferrovia que vai ligar São Paulo a Campinas, de velocidade mais baixa.
O trajeto de Xangai a Pequim tem também a maior ponte do mundo, a Danyang-Kunshan, que se estende por 165 quilômetros, além de outras duas pontes entre as dez maiores. Na G28, ela começa pouco depois da saída da estação Hongqiao e atravessa o entorno verde da maior cidade chinesa, mas passageiros como Conor mal desviam o olhar para fora.