TEXTO: PRISCILA ZOGHBI
Você pega um livro, folheia e não consegue passar da página 5. Coloca de lado e procura um outro: começa e dessa vez não chega ao final da primeira página. Nenhum assunto consegue te prender e mesmo quando o assunto é interessante, você não consegue ler. Já sentiu ou está sentindo isso? É provável que você tenha tido (ou esteja!) ressaca literária.
Ressaca literária é algo que quase todo leitor já passou. Para alguns a ressaca acontece após o término de um livro muito denso ou impactante. Para outros, uma sobrecarga de leitura pode resultar em ressaca.
Os “sintomas” da ressaca não são difíceis de adivinhar: estafa, dificuldade de concentração e até desânimo.
E, da mesma forma do que ocorre com a ressaca tradicional, as formas de cura variam de pessoa para pessoa. Ou melhor, de leitor para leitor. No entanto, algumas soluções são usuais: “dar um tempo” nas leituras, conversar sobre livros e buscar livros mais leves.
Após ler o “O jovem”, último livro lançado pela mais recente ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux, eu não tinha dúvidas que iria entrar em (mais) uma ressaca literária. Dessa vez, para superar, a melhor opção foi conjugar soluções. Um pouco de tempo para digerir a obra recém lida junto de um livro que tinha absoluta certeza que iria amar. Para mim, um dos autores que possuem a capacidade de curar qualquer ressaca literária é o moçambicano Mia Couto.
Antônio Emílio Leite Couto, ou Mia Couto, é um escritor moçambicano que coleciona uma longa lista de prêmios literários, entre eles o famoso prêmio Neustadt.
Para mim, é difícil escolher uma obra favorita de Mia. Apesar disso, optei por reler um dos livros que me surpreende toda vez: “O Último Voo do Flamingo”, publicado pela Companhia das Letras.
A história é contada por um tradutor escolhido pelo prefeito de Tizangara (cidade fictícia) para auxiliar a comunicação entre militares da ONU e os locais.
Somente quando explosões de soldados da ONU começam a ser frequentes, a atenção dos responsáveis da Organização das Nações Unidas é despertada.
O livro é recheado de fortes críticas sociais, em especial relacionadas à guerra civil e ao suposto processo de “pacificação”. Uma das críticas mais cirúrgicas é a incapacidade de explicar ou mesmo entender a história africana segundo os olhares europeus. O povo moçambicano não apenas é capaz de escrever e contar sua própria história como é o único competente para tal tarefa.
As críticas sociais são contadas a partir da escrita poética e característica de Mia. Inquestionavelmente foi o estilo de Mia Couto que fez eu me apaixonar à primeira vista pela sua obra como um todo. “O Último Voo do Flamingo” é um dos exemplos claros disso.
Não sem razão o escolhi para começar o ano. De acordo com os antigos de Tizangara, é o voo do flamingo que traz o sol, o novo, após tempestades.
No início de 2023, a colunista que aqui escreve deseja que o voo do flamingo esteja presente no céu de cada um que me lê, trazendo um ano repleto de luz e realizações. Feliz ano novo!
*Priscila Zoghbi escreve sobre livros em coluna publicada no caderno Você quinzenalmente, às segundas-feiras.