GUARDIÕES DOS SABERES

Projetos recuperam ingredientes da culinária dos povos amazônicos

Projetos recuperam ingredientes da culinária dos povos amazônicos, criando novas receitas e destacando as tradicionais

Projetos recuperam ingredientes da culinária dos povos amazônicos

Baseada no uso sustentável dos recursos naturais, a bioeconomia tem na agricultura familiar o ponto central da produção de alimentos e ingredientes agroecológicos. A sua premissa de aproveitamento da sociobiodiversidade é responsável pela segurança alimentar e geração emprego e renda tanto nas áreas rurais quanto urbanas. Com um território biodiverso, o Pará abriga uma imensidade de espécies vegetais que viabilizam a produção de medicamentos, fragrâncias e cosméticos e, principalmente, a inserção na culinária local. 

Em um país de extensa biodiversidade como o Brasil, a bioeconomia é uma alternativa de investimento e crescimento econômico do país apoiado no uso sustentável de um território ancestral, respeitando o espaço e período entre as colheitas. Essa realidade faz parte do trabalho realizado pela Rede Bragantina de Economia Solidária, Artes e Sabores, nascida em 2006, no município de Bragança.  

Com o intuito de protagonizar a organização da agricultura familiar no nordeste paraense, a iniciativa protege a sociobiodiversidade local através do uso responsável da terra. Para isso, a Rede conta com participação de mais de 2 mil famílias entre agricultores, comunidades quilombolas, centrais de reforma agrária, grupos de mulheres e jovens em um processo que envolve comercialização e consumo de produtos que estavam em vias de desaparecimento e, com isso, estabelece contato entre os produtores do campo e os consumidores da cidade.

“O cará, ariá, tucumã e pupunha sempre estiveram presentes na alimentação dos povos do campo e, de repente, as sementes, as formas de multiplicação e  consumo foram se perdendo pela incorporação de novos hábitos alimentares, principalmente com produtos industrializados. Trabalhamos para mostrar a importância desses alimentos, além de fazer a multiplicação das sementes. Nós conseguimos dar ressignificado a esses produtos nas comunidades tradicionais e, ao mesmo tempo, levar a oferta deles à cidade”, explica a engenheira agrônoma Maria Nazaré Ghirardi, membro da Rede Bragantina. 

O trabalho se traduz na relevância em salvaguardar a cultura alimentar paraense que tem raiz na culinária afroindígena. A imensa variedade de ingredientes nativos viabilizam diversas formas de aproveitamento no preparo de pratos que têm como base o uso da mandioca, com destaque para farinha, o tucupi, a goma, além de seus subprodutos com a utilização das folhas. Além disso, os frutos nativos, como tucumã, pupunha e castanha-do-pará, têm amplo espaço na produção de cosméticos e fármacos, que garantem o sustento alimentar dos produtores.

“Os produtos agroecológicos que estão inseridos na bioeconomia têm uma dimensão muito ampla: ecológica, das formas de produzir; socioeconômica, onde entra a cultura e a dimensão político-organizativa, em que a população se organiza em torno de tudo que envolve a natureza, os rios, a floresta, os animais, o clima. É uma prática social que os benefícios estão para além do agricultor, são para toda sociedade”, contou a representante. 

A geração de emprego e a soberania alimentar são os principais benefícios para as comunidades envolvidas no processo de produção, mas não somente isso. Em contato com os ingredientes naturais, os agricultores envolvidos exercem o papel de guardiões dos saberes ancestrais da floresta, além de se sentirem pertencentes à terra e contribuírem para a exploração do potencial sustentável do território amazônico. 

“Essas pessoas muitas vezes não são reconhecidas pelo seu trabalho e a Rede Bragantina recupera isso fazendo elas se sentirem parte de um grupo. Economicamente, vender esses produtos agrega valor, principalmente para mulheres, que aprendem sobre embalagem, apresentação, preço e processamento. Outro avanço é a relação de confiança com os consumidores através das feiras na comunidade. São processos muito significativos para os agricultores que não tem renda familiar alta e encaram a valorização produtiva, ecológica e econômica dos seus produtos”, relata Maria Nazaré Ghirardi. 

GASTRONOMIA

Ao chegar na cidade, os ingredientes agroecológicos produzidos no campo são amplamente explorados na gastronomia local, como é o caso do restaurante Toró Gastronomia Sustentável. Aliado à pesquisa e criação de experiências gastronômicas, o empreendimento, criado em 2015, tem o propósito de fortalecer a cultura alimentar regional valorizando a potência da biodiversidade nativa e suas possibilidades de incorporação na culinária. 

É através da gastronomia criativa, com riqueza de texturas e sabores, que o Toró conecta pessoas ao território. As finalidades são muitas: viabilizar trocas, fazer uma culinária sustentável, investigar a biodiversidade comestível e a importância de sua conservação e, sobretudo, valorizar os guardiões dos territórios, espaços de produção e manutenção da cultura alimentar amazônica. Denominada “cozinha de produto”, essa prática se volta para os ingredientes regionais sazonais, cuja procedência vem da pesca sustentável, agricultura familiar e comunidades extrativistas tradicionais. 

“O trabalho tem como alicerce fundamental os princípios da sustentabilidade para servir uma comida regional biodiversa, já que incorpora práticas do manejo sustentável da floresta à mesa. Os alimentos advindos da base de produção agroecológica possuem valor agregado que vai além de seu sabor orgânico, que é incontestável. É o tipo de produto que fomenta uma produção em respeito com quem planta, quem come e com o meio ambiente, conservando ecossistemas naturais”, afirma o chef Wagner Vieira, co-fundador do Toró. 

As múltiplas as oportunidades de descoberta de consumo dos ingredientes acompanha de perto as  “muitas as possibilidades de uso e aproveitamento integral do alimento, possíveis de serem realizadas nas preparações culinárias, como geleias, tortas, sucos, doces, bolos, caldos, molhos, sopas, pães, entre outras receitas servindo de fonte de vitaminas, minerais, proteínas e fibras. Além de ser uma alternativa nutritiva e mais econômica a todos, é também uma maneira sustentável, inteligente e acessível de lidar com o alimento”, aponta a co-fundadora do Toró, Susane Rabelo.

COZINHA RAIZ

Os princípios da bioeconomia também estão presentes na  base da cozinha tradicional. Desde 2003, em Cachoeira do Arari, Ilha do Marajó, o restaurante Quintal da Zezé tem a proposta de oferecer uma experiência acolhedora aliada aos sabores de comida caseira, tendo a simplicidade como diferencial da apresentação da culinária marajoara. 

Zezé Gama

Com proposta de alimentar de forma simples e saborosa, o local é considerado um ponto de cultura paraense. Isso porque o modo de preparo e os ingredientes são voltados a uma cozinha de raiz, em que são respeitados os processos culinários ancestrais sem ocultar o sabor real dos alimentos. 

“Meu trabalho está relacionado em atender bem as pessoas que vêm de longe, a trabalho ou a passeio, conhecer a cidade que é tão esquecida. Vejo aí a minha responsabilidade em fazer com que a experiência gastronômica dessas pessoas seja a melhor possível. A cozinha marajoara é simples e, de certa forma, especial. Quando as pessoas provam o frito do vaqueiro e perguntam os ingredientes, e eu respondo que é basicamente sal, elas se surpreendem com o sabor”, relata a cozinheira e proprietária Zezé Gama.

Os ingredientes naturais conferem um sabor original ao alimento, destacando os sabores de cada elemento presente nos pratos. Isso auxilia na manutenção da culinária local viva, sem perder os costumes tradicionais no processo de feitura de cada prato da culinária local. “A qualidade dos alimentos e o sabor são inigualáveis. Os frutos são colhidos maduros e tendem a ser mais nutritivos, mais saborosos e mais sustentáveis, tendo menos impactos e ainda favorece a economia local, trazendo assim segurança alimentar, conexão com a natureza e relação custo-benefício”, conclui a chef de cozinha.