CRÍTICAS

1ª Edição do Festival Aceita voltado ao público LGBTQIAP+ deixa a desejar

A primeira edição do festival, além de música, com presença de artistas com carreira nacional e internacional, pretendia trazer discussões importantes acerca do meio ambiente e direitos humanos

O Festival voltado à diversidade e ao público LGBTQIAP+ encerra primeira edição e contou com uma debandada de colaboradores e críticas de artistas em alto volume
O Festival voltado à diversidade e ao público LGBTQIAP+ encerra primeira edição e contou com uma debandada de colaboradores e críticas de artistas em alto volume

Inúmeras críticas e muita polêmica marcaram a realização do Festival Aceita, no último final de semana, em Belém. Com apoio do Ministério do Turismo e participação ativa de várias pastas federais, incluindo patrocínio máster bancário, o que era para ter sido um momento de celebração se transformou em catástrofe. A primeira edição do festival, além de música, com presença de artistas com carreira nacional e internacional, pretendia trazer discussões importantes acerca do meio ambiente e direitos humanos, preparando seu público para a COP-30, em Belém, em novembro de 2025. No entanto, foi o contrário.

O desmantelo começou desde o seu início, quando equipes técnicas anunciaram o desligamento do evento. Uma nota pública assinada por Raissa Cout justificou o desligamento por circunstâncias insustentáveis. “Desde o início dos preparativos, nossa equipe foi constantemente requisitada para realizar funções que iam além de suas atribuições, o que sobrecarregou significativamente os profissionais envolvidos. Esse acúmulo de tarefas extras não previstas comprometeu a qualidade do trabalho e causou um desgaste desnecessário. Além disso, a organização do evento se mostrou displicente em diversos aspectos fundamentais para o sucesso da produção. A falta de planejamento adequado, a audiência de suporte logístico e a comunicação falha entre as partes envolvidas criaram um ambiente de trabalho caótico para a equipe técnica manter o padrão de qualidade esperado e honrar o compromisso assumido com o evento”, detalhou.

SEM ACESSIBILIDADE

A equipe de fotografia contratada para cobrir o evento também anunciou pelas redes sociais seu desligamento. Em nota coletiva, assinada pelos fotógrafos Ana Serrão, Ian Nóbrega, Liliane Moreira, Matheus Sousa e Ygor Negrão, apontou a falta de acessibilidade o fator mais crítico para a decisão, “que resultou foi um ambiente de constrangimento e desrespeito ao profissional PcD da nossa equipe”. “Desligamento da Equipe de Fotografia do Festival Aceita. Após consenso entre todos da equipe de fotografia do Festival Aceita, decidimos nos desligar da cobertura do evento. Essa decisão foi tomada devido a uma série de situações de violência, desrespeito e falta de estrutura”, publicou Ygor Negrão em seu perfil no X.

No palco, durante a apresentação de Tiffany Boo, a artista Tertuliana Lustosa, vocalista da banda “A travestis”, desabafou sobre a falta de organização do evento. “O meu cachê não foi pago, eu tenho uma série de exigências e não foram cumpridas. Foi uma humilhação para gente conseguir alimentação. Eu não saí do interior do Piauí e fazer minha carreira em Salvador, me mudar para o Rio de Janeiro e sofrer tudo que sofri de transfobia para viver isso aqui”.

DESASTROSO

Matheus Aguiar, que criou o coletivo de produção cultural NoiteSuja, que valoriza e remunera pessoas LGBTQIAP+ residentes de periferias, especialmente as artistas Drags, também se manifestou. “Trabalho com produção de eventos com e para pessoas LGBTQIAP+ há 14 anos, e nessa trajetória eu ainda não havia presenciado um evento tão danoso para os artistas convidados e a equipe contratada, na cidade de Belém e em qualquer outro lugar. Não se trata de um evento inclusivo de nenhuma forma. Para haver inclusão, não basta apenas convidar artistas LGBTQIAP+, indígenas e pessoas com deficiência. É preciso, primeiro, ouvir os profissionais que se pensa em contratar (bandas, fotógrafos, produtores…), entender as suas especificidades e demandas e, só assim, construir um espaço realmente inclusivo”, disse.

Ele continuou: “Quando se divulga um evento que prega a inclusão e a diversidade em seu palco, mas que nos bastidores desrespeita os profissionais de inúmeras formas, o que está se fazendo é, na verdade, um festival enganoso, que tenta ludibriar seu público e sua cadeia produtiva com falsas promessas”, disse Matheus, citando ainda o protesto organizado pelo Movimento das Themônias, em forma de festival paralelo, o Festival Rejeita.

“Percebo que o desastre do Festival Aceita foi generalizado e, claro, quem mais sofreu foram os artistas do Norte. Um exemplo são os cantores, as bandas, os fotógrafos, os produtores daqui: sempre são a ‘mão de obra barata’, em relação aos profissionais de fora, geralmente trazidos do Sudeste e bem recebidos em hotéis e passeios pela cidade. Com o trabalho precarizado e desrespeitado, os profissionais do Norte nunca conseguem se desenvolver, construir shows mais elaborados, conseguir equipamentos melhores, conseguir finalmente subsistir através do seu trabalho”, critica Matheus.

Para Matheus, não dá para importar modos de empreender festivais do Sudeste para implementar na Amazônia a todo custo. “Nesse território, as nossas demandas são ímpares, o clima é diferente, a maneira de criar e consumir arte é outra. A história nos conta que há mais de 100 anos, tentaram impor uma forma de ser que veio de fora, a chamada ‘Belle époque’. Tentaram fazer uma Paris na Amazônia! Mas a pergunta que fica é: as pessoas que aqui já moravam queriam isso? Por que nos impor os costumes, as roupas, a arquitetura, toda uma cultura? Sinto que algumas produções lideradas por sudestinos tem um quê de Belle époque: querem nos impor uma coisa que não somos, desconsiderando os nossos saberes locais. E o povo daqui que engula a seco, com farinha da baguda”, continua.

PRA SUDESTINO VER?

A artista visual, designer e produtora cultural Norah Costa não se furtou de fazer sua crítica sobre o tratamento dado aos artistas locais em um dos eventos do próprio festival, com uma performance depois replicada em seu perfil no Instagram. “Para quem é este festival? Quem faz este festival? Porque eu só vejo branco, sudestino, sulista, mas quem está trabalhando, se matando, levando porrada nas costas, é aqui, a minha amiga. Como podemos esperar por soluções ambientais justas quando a COP ignora a representatividade amazônica?”, começou.

“O Festival Aceita deveria celebrar a nossa ancestralidade, com os verdadeiros artistas da nossa região, mas só mostrou a desorganização e falta de respeito com as raízes que nos sustentam. Um festival transfóbico, racista, machista, capacitista e xenofóbico. Das nossas águas vocês não vão mais tomar. Na nossa terra vocês não vão mais desvalorizar. Respeitem os artistas do Norte. No próximo ano vai ter de novo festival, vai ser bacana, vai ser legal, mas para quem? Tudo isso só para alimentar certas corjas. Então, que este seja o primeiro do último dia em que a gente não vai mais aceitar que pisem no nosso território sem nos consultar”, finalizou Norah Costa.

A reportagem procurou os organizadores do evento por telefone e e-mail, conforme orientação da Assessoria de Comunicação, que afirmou que não estava mais prestando serviço ao festival, após o encerramento do evento. Ninguém respondeu aos contatos.