TEXTO: TYLON MAUÉS
Criada em 2020, no começo da pandemia de covid-19 no Brasil, a série em quadrinhos “Confinada”, publicada semanalmente no Instagram do desenhista e escritor Leandro Assis, teve de cara um público fiel. O sucesso das histórias de uma família rica e branca com suas empregadas negras foi com um rastilho de pólvora que, depois, virou livro com a coletânea das tiras e mais material inédito. “Os Santos”, a série seguinte de Assis e da escritora Triscila Oliveira, que também coescreveu “Confinada”, deve seguir o mesmo caminho e ser lançado em livro, provavelmente em 2023, mais uma vez pela editora Todavia.
Curiosamente, “Os Santos” foi a série que deu origem a “Confinada”, mas as forças das circunstâncias fizeram com que ela desse um tempo. A relação entre patrões e empregadas quase ganhou vida própria. A repercussão entre os leitores foi imensa. Leandro, criador da série, a escrevia sozinho e o retorno dos leitores foi enorme. Em especial empregadas domésticas e parentes de empregadas, que passaram a comentar constantemente e a serem fonte do escritor. Foi aí que entrou Triscila, que de comentarista constante e valiosa, virou também escritora.
“Os Santos” originalmente se chamava “Os Bolsominions”, mas a “encheção de saco” destes nas redes sociais e os conselhos de amigos fizeram Assis optar pela mudança. A alusão ao racismo, preconceito, total falta de empatia, entre tantas características ruins, acompanham a quem ainda defende o ex-presidente em atividade, mas não são exclusividades destes.
Tanto em “Confinada” quanto “Os Santos”, há um senso de justiça e punição em seus momentos mais significativos, mas assim como na vida real o maniqueísmo não dá as caras. Mas, quando a família de gerações de empregadas dá uma volta por cima para aplicar um golpe e ficar com uma dinheirama que estava sendo usada para aplicações fraudulentas, não há como deixar de torcer pela classe mais pobre – não é spoiler, isso já está publicado.
“Fazer ‘Confinada’ durante a pandemia foi fundamental pra mim. Serviu para tirar um pouco a cabeça dos meus problemas”, afirma Assis, que admite que não sabe o que fará após “Os Santos”. A torcida é que não demore muito e que mais um grande contragolpe sobre os canalhas venha o quanto antes. A seguir, a entrevista concedida ao colunista com exclusividade pelo desenhista e escritor:
P: O quanto a pandemia e o isolamento social tiveram efeitos no sucesso de “Confinada”? O projeto começou a ser criado quando?
R: “Confinada” foi criada por causa da pandemia. A série que a gente vinha fazendo antes era “Os Santos”, que decidimos pausar durante a pandemia. Eu não queria trazer o covid para a história. Mas, os leitores pediram para que continuássemos com a série, já que as trabalhadoras domésticas estavam sendo muito afetadas pela pandemia. A solução foi criar a “Confinada”, uma espécie de “spin-off” de “Os Santos”.
“Os Santos” já havia viralizado quando a Mídia Ninja começou a compartilhar as tiras. Mas, sem dúvida, “Confinada” conquistou ainda mais leitores. E ouço de muita gente que a série ajudou bastante a enfrentar os medos e inseguranças da pandemia. Era algo para acompanhar e se informar em meio ao caos.
“É assustador ver como a elite econômica brasileira apoiou sem pudores um governo neofascista, militar, opressor. E tudo isso apenas para conter os avanços sociais recentes (…) O branco rico é apegado a seus privilégios e está disposto a tudo para mantê-los.”
P: O sucesso da série e, posteriormente, “Os Santos”, entre os leitores é também uma catarse, um grito de muitas pessoas esmagadas pela falta de oportunidades?
R: Eu criei “Os Santos” em reação direta ao movimento de extrema direita que o Brasil estava (e ainda está) enfrentando. É assustador ver como a elite econômica brasileira apoiou sem pudores um governo neofascista, militar, opressor. E tudo isso apenas para conter os avanços sociais recentes. O branco rico no Brasil acha que o “empresário brasileiro sofre demais”, acha que os “aeroportos haviam virado rodoviárias”, é contra as cotas, reclamou da PEC das empregadas domésticas. O branco rico é apegado a seus privilégios e está disposto a tudo para mantê-los.
Então, quando criei “Os Santos”, não estava pensando em ser porta-voz “de pessoas esmagadas pela falta de oportunidade”. Meu objetivo era provocar o branco rico. Era mostrar ao branco rico que para seus privilégios existirem, alguém está sendo explorado. E esse alguém é a maioria da população.
Claro que, uma vez a série lançada, eu não tenho controle sobre como ela será recebida. E nesse ponto, realmente, passei a receber muitas mensagens de trabalhadoras domésticas e parentes delas agradecendo pelo trabalho e pela maneira como a realidade delas estava sendo retratada na série. Nesse momento vi a responsabilidade do trabalho. E foi por isso que decidi chamar alguém que conhecesse bem a realidade das trabalhadoras domésticas para me ajudar. Então convidei a Triscila para escrever comigo.
P: Em muitos momentos de “Confinada” havia claramente um grito de protesto contra o atual governo. O quanto isso partiu de você ou de Triscila?
R: Como expliquei, essa oposição ao governo Bolsonaro está desde o início do trabalho, antes mesmo da entrada da Triscila. Na verdade, quando iniciei “Os Santos”, a série se chamava “Os Bolsominions”, pois a ideia era retratar uma família de classe média alta do Rio, eleitora do Bolsonaro. Foram os leitores que me convenceram a mudar o título da série. Muitos eleitores do Bolsonaro reclamavam que nem todos eles eram racistas, preconceituosos, intolerantes, etc. Bom, sempre achei que se você não é racista você não vota em racista. Mas enfim, como os leitores “bolsominions” se achavam “santos”, rebatizei a série de “Os Santos”.
Agora, claro que a Triscila tem a mesma visão política que a minha. Caso contrário não estaríamos fazendo esse trabalho juntos.
“Muitos eleitores do Bolsonaro reclamavam que nem todos eles eram racistas, preconceituosos, intolerantes, etc. Bom, sempre achei que se você não é racista você não vota em racista. Mas enfim, como os leitores Bolsominions se achavam ‘santos’, rebatizei a série de ‘Os Santos’”.
P: Também em momentos de isolamento, o quanto a obra e a boa repercussão dela afetaram o seu ânimo em dias tão difíceis?
R: Fazer “Confinada” durante a pandemia foi fundamental pra mim. Serviu para tirar um pouco a cabeça dos meus “problemas”. Vi muita gente passando por problemas piores que os meus, e pude me focar em falar disso nos quadrinhos.
P: A forma como as obras são publicadas no Instagram faz com que a repercussão seja imediata. O quanto isso influenciou no desenrolar das histórias?
R: A influência existe. Nem sempre. Mas já aconteceu algumas vezes da reação do público a uma tira fazer a série abordar algo que não estava previsto. Certa vez, por exemplo, um bolsonarista fez uma série de ataques nos comentários. Então criamos uma tira para respondê-lo, já que os ataques dele eram um amontoado de clichês bolsonaristas. Chegamos a usar os comentários dele como falas de personagens.
P: Em algum momento houve alguém que protestasse em como era mostrada a família dos patrões?
R: Muitas vezes. Principalmente homens brancos héteros. São os primeiros a reclamar que “nem todo homem branco hétero” age como os personagens da série. Eu só posso rir.
P: Já há algo planejado para depois de “Os Santos”?
R: No momento o foco é mesmo terminar “Os Santos”.