Entretenimento

Resistência, conhecimento e tradição no carimbó de Marapanim

A cidade trouxe de volta o Festival que reúne as dezenas de grupos quem mantém viva essa rica manifestação cultural. Na foto, Mestre Bigica. FOTO: Denilson D'Almeida
A cidade trouxe de volta o Festival que reúne as dezenas de grupos quem mantém viva essa rica manifestação cultural. Na foto, Mestre Bigica. FOTO: Denilson D'Almeida

O Festival de Carimbó realizado em Marapanim, no último final de semana, mostrou, mais uma vez, que o coração do povo marapaniense bate no ritmo do curimbó – um dos principais instrumentos que ajudam a embalar esta manifestação cultural tida como patrimônio do Brasil desde 2014. O evento, que não foi realizado em 2020 e 2021, em virtude do período mais crítico da pandemia de covid-19, voltou com força e trouxe como tema o protagonismo das mulheres para manter viva a cultura do carimbó, que por décadas predominou com certo ar patriarcal.

Este ano, a única competição que teve no festival foi a escolha da “Sereia do Carimbó”, que é como são chamadas as “misses” que dançam para defender seus grupos. Não houve disputa para escolher a melhor composição, nem a melhor coreografia. Esta decisão foi tomada por meio de uma votação entre os representantes, mestras e mestres dos grupos de carimbó, que, diante do cenário ainda pandêmico, não tiveram tempo hábil para organizar tudo à altura do que a festa pede.

No total, o município tem catalogados 42 grupos de carimbó. A maioria com sedes em pequenos vilarejos. O Sereias do Mar, fundado em 1994, na comunidade rural de Vila Silva, é um dos primeiros a ser formado exclusivamente por mulheres e hoje é liderado por Raimunda Freire – a Mestra Bigica, que foi uma das homenageadas pelo Festival.

Ela compartilhou a exaltação com todas as demais mulheres do grupo e fez uma menção honrosa à mãe dela, com quem aprendeu muito sobre o carimbó. “Eu cresci no meio do carimbó, acompanhando o meu pai e meus irmãos, que tinham um grupo. Um dia eu precisei do grupo deles para tocar e eles não puderam se apresentar. Era dia de futebol. Então tive a ideia de fundar um grupo só com mulheres. O papai e os meus irmãos ensinaram a gente (ela e as irmãs) tocar os instrumentos”, lembrou mestre Bigica.

Amanda Rabelo, que lidera o grupo de mulheres As Boiunas do Carimbó, em que a maioria das participantes são da comunidade de Vista Alegre, área ribeirinha de Marapanim, acompanha a trajetória de mestre Bigica e cumprimentou a organização do Festival por ter dado visibilidade à atuação das mulheres na cultura do carimbó. “A mulher sempre esteve presente ativamente na realização dos festivais e nas rodas de carimbó”, pontuou. “São elas que organizam os bingos para conseguir fundos para os festivais nas comunidades. A nossa função não é só costurar e dançar. A gente participa dos festivais tocando o curimbó e cantando”, completou.

Os grupos de mulheres Sereias do Mar e As Boiunas do Carimbó. FOTO: Denilson D’Almeida

NOVAS GERAÇÕES

O Sereias do Mar já tem CD lançado com 12 músicas autorais e estão trabalhando para gravar um novo, já com músicas inéditas, compostas por mestre Bigica. A irmã dela, Creusa Freire, é a maior incentivadora e parceira para fazer o grupo crescer e se perpetuar pelas próximas gerações.

Além da liderança no grupo de carimbó, Bigica e Creuza comandam as tarefas no centro de produção de farinha da família. Vale lembrar que a agricultura familiar é a principal atividade econômica em Vila Silva. “Aqui, de dia, a gente lida com a roça, mas de noite a gente vai para o nosso centro cultural para ensaiar carimbó. Também ensinamos o que a gente sabe para as crianças e jovens que querem aprender a tocar, dançar”, diz Creuza.

Questionada se é difícil aprender a tocar o curimbó, ela sorri dizendo que tem homens e mulheres que não acertam o ritmo. “O carimbó está dentro de todos nós, mas uns tem vocação para os instrumentos de sopro, outros para a maraca, para o tambor e para o curimbó. O segredo para aprender é gostar e saber viver o carimbó”, destaca a instrumentista, que se orgulha ao lembrar que aprendeu o que sabe com a mãe.

O grupo Sereias do Mar é um dos poucos que conta com um centro cultural próprio (conhecido, no universo do carimbó, como barracão). “A gente quer transformar o centro cultural num grande espaço de aprendizagem, ensinando música, artesanato, costura e produção de instrumentos. Queremos ensinar os nossos filhos e netos para manter viva a cultura do Carimbó e repassá-lo de geração a geração como sempre ocorreu”, projetou.

Hoje, os netos de Bigica já ensaiam no curimbó, um dos principais instrumentos para se tocar o carimbó. Os meninos são chamados carinhosamente de “botos” numa espécie de trocadilho por serem os únicos do sexo masculino a participar das rodas de carimbó.

São muitos os jovens a formar novos grupos e aprender com os mestres. FOTO: Denilson D’Almeida

DANÇA

Também na dança prepara-se novas gerações. Quando Eduardo Paiva entrou para o grupo de carimbó Japiim, tinha apenas 16 anos de idade. Ingressou como bailarino, já sabendo os passos da dança. “Acho que quem nasce em Marapanim aprende a dançar carimbó assim que aprende a andar. É difícil não ser contagiado pela batida, pelo ritmo”, comentou.

Hoje, aos 29 anos de idade, Eduardo é o coreógrafo, estilista e o responsável pelo grupo de dança do Japiim. Atividade que desenvolve pelo prazer de repassar aos outros o conhecimento que adquiriu com a cultura do carimbó. “As crianças já participam dos ensaios, dançando, outros tocando instrumentos. A gente tem nos nossos mestres de carimbó, músicos, artesãos uma fonte riquíssima de conhecimento”, ressaltou.

Mestre Mário, um dos dirigentes do Japiim, com dezenas de composições, canta a natureza, o cotidiano da região e as belezas de Marapanim. Ele lamentou o festival não ocorrer no formato tradicional, com as disputas de novas composições e coreografias. “Não é o mesmo”, diz ele. “Porém, a gente precisa respeitar a decisão da maioria e exaltar essa nossa cultura, que é única. Ano que vem estaremos aqui novamente, com canções inéditas, grupo de dança e sereia prontos para disputar”, concluiu.

Zeca Negrão, aos 74 anos, é um dos principais responsáveis pela confecção dos instrumentos utilizados pelos grupos de carimbó de Marapanim. FOTO: Denilson D’Almeida

Arte que vira instrumento de som

Toras de madeira, panelas, fios de nylon e outros itens viram arte e instrumentos nas mãos de seu Zeca Negrão. Aos 74 anos de idade, o artista plástico é um dos principais responsáveis pela confecção dos instrumentos utilizados pelos grupos de carimbó de Marapanim. E, claro, foi uma das figuras ilustres a participar da retomada do festival este ano.

“Eu comecei como artesão que trabalha com madeira. Aos poucos, fui aprimorando o meu conhecimento e as técnicas para a cultura do carimbó”, comentou. No ateliê, que funciona no pátio da casa dele, várias obras de artes e instrumentos estão em exposição e à venda. São tambores, milheiros, maracas, curimbós e banjo.

Logo na entrada, chama a atenção um quadro dedicado ao Mestre Lucindo, um dos maiores nomes do carimbó paraense. “Eu tenho uma composição inspirada no mestre”, conta Zeca.

Quando questionado o que difere os instrumentos de carimbó, o artista responde que a maioria das peças precisam reproduzir sons similares aos da natureza. “Tenho um banjo confeccionado a partir do reaproveitamento de panela. O som dele não é o mesmo do banjo feito em madeira. Tem ainda instrumentos de corda feitos a partir da cuia”, exemplificou.

Zeca aprendeu de forma autodidata as técnicas para produzir os instrumentos e também foi desta forma que ele aprendeu a tocar. Na segunda, 5, Marapanim celebrou o Dia Municipal do Carimbó, mas o feriado local deste ano contou com uma atmosfera de “ressaca”, já que foi antecedido por três dias de festival. Uma excelente ressaca.

Texto: Denilson D’Almeida/Especial para o Caderno Você