Cintia Magno
O mês de novembro é marcado pela celebração da memória de Zumbi e Dandara, grandes heróis, líderes do Quilombo dos Palmares, que lutaram pela igualdade racial e contra a escravidão. A própria oficialização de uma data para celebrar o Dia da Consciência Negra no Brasil, o dia 20 de novembro, é parte da luta contínua que segue até os dias de hoje. Apesar dos grandes avanços, o cenário ainda é de muita luta e de expectativas pela construção de uma política oficial de reparações ao povo negro no Brasil.
Militante do movimento nacional Quilombo Raça e Classe, a jornalista, atriz e educadora social Wellingta Macêdo não tem dúvidas de que o próprio fato de, hoje, se pautar a questão racial no mês de novembro é fruto dos vários avanços já conquistados pela população negra ao longo de muitos anos. Mas o que realidade da sociedade brasileira deixa evidente é que ainda há muito o que se avançar rumo à construção de um país antirracista.
“Nós avançamos muito. Hoje existe mais representatividade negra, principalmente nas mídias, tanto na TV, quanto nos filmes e em novelas, até porque o próprio mercado absorveu várias pautas e várias reivindicações históricas do movimento negro e absorveu pela própria pressão do movimento”, avalia. “Mas o nosso país continua muito desigual e essa desigualdade tem raça e classe porque existe o preconceito social, mas existe também o racismo. E infelizmente o racismo ainda é algo real na vida de muitos negros e negras tanto aqui do Estado do Pará, quanto no Brasil”.
Mesmo que exista uma legislação que criminalize o racismo no Brasil, Wellingta lembra que o povo negro ainda precisa lutar muito para que um racista seja efetivamente preso pelo crime que cometeu. Ainda hoje, casos estarrecedores de morte de pessoas negras, sobretudo de negros e negras pobres, são uma realidade.
Os devotos de religiões de matriz africana ainda são perseguidos pelo racismo religioso e as mulheres negras continuam sendo a maioria das mães solos do país, as primeiras a ficarem desempregadas e as principais vítimas do feminicídio.
“Vimos recentemente casos escabrosos como o caso do Genivaldo no Estado do Sergipe, morto pela polícia que transformou o camburão numa espécie de câmara de gás, um absurdo, uma coisa que quando tu achas que não tem nada de pior que possa acontecer, acontece”, lembra Wellingta.
“Vai fazer dois anos que o João Alberto foi morto nas dependências de um supermercado no Rio Grande do Sul na véspera do Dia da Consciência Negra. Também está fazendo dois anos do assassinato do George Floyd nos EUA, que comoveu o mundo e levou uma multidão para as ruas mesmo em meio a uma pandemia cruel para dizer que Vidas Negras Importam, para dizer que o racismo é real e mata negros, sobretudo negros pobres, tanto lá nos Estados Unidos, quanto aqui”.
Com muitos avanços por acontecer no que se refere à garantia de condições iguais para todos, o cenário de mudanças no cargo máximo do Poder Executivo nacional, fruto da escolha da maioria da população que votou nas eleições deste ano, a expectativa apontada por Wellingta é de reparações ao povo negro.
REPARAÇÕES
“Uma das nossas pautas históricas é a pauta das reparações, a pauta de reparações já! São mais de 130 anos da abolição da escravatura oficial, foram mais de 300 anos de escravidão no Brasil, e nós nunca tivemos uma política oficial de reparações ao povo negro no Brasil, aos descendentes da diáspora africana. Então, existe ainda essa pendência histórica do Estado Oficial com a população negra”, avalia.
“Então é uma luta objetiva por condições justas porque nós temos capacidade para estar em qualquer lugar, ocupando, inclusive, a academia. Por isso as cotas raciais são importantes, elas são parte da política de reparações mundial e que aqui no Brasil chegou ainda muito tarde e que precisa também avançar porque a porcentagem das cotas não é equivalente à porcentagem da população negra daquele lugar. Como se vê, a gente ainda precisa lutar muito para avançar”.
Parte das medidas estruturais passa pela educação
À exemplo da criação da Lei de Cotas, instituída no Brasil há 10 anos, a historiadora e ativista do movimento negro, integrante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Nazaré Cruz, destaca que, quando a população negra pensa políticas públicas, pensa-as não apenas para o povo negro. Não à toa, ela acredita que a esperança em um país melhor a partir da mudança registrada nas urnas passa pela maior presença de intelectuais negros e negras na gestão do país.
“Ter a presença de intelectuais negros em várias temáticas do governo na transição é muito importante. Eu espero muito que isso se reflita na gestão também porque a questão racial não pode ficar no gueto somente do Ministério da Igualdade Racial. Nós precisamos ter negros comprometidos com essa pauta em todos os espaços de poder, em todas as esferas, para que a gente possa, de fato, conseguir ter uma incidência na política”, considera.
“Quando o movimento negro pensa a política, ele pensa a política para a população como um todo, visto as cotas raciais que são uma pauta do movimento negro, mas que não é só para as pessoas negras, mas também para os estudantes de escola pública e, lá, você vai ter estudantes negros e não negros. O racismo é estrutural, então, a gente precisa ter medidas estruturantes para combatê-lo”.
RESPONSABILIDADE
Parte dessas medidas estruturais passa, claro, pela educação. Mas Nazaré reforça que é preciso compreender que a luta antirracista não é uma responsabilidade da população negra, mas de toda a sociedade. “A educação é um pilar, é fundamental. Eu sou professora e quando chega o mês de novembro é o mês que todo mundo nos procura. É como se nós, negros, só existíssemos durante o mês de novembro por conta da semana da Consciência Negra. Então, vários colegas começam a nos procurar pedindo que faça uma palestra, uma intervenção na escola”, contextualiza.
“Não tem problema de a gente dialogar sobre isso, estamos abertos o ano todo. Mas eu sempre pergunto: o que a escola está fazendo sobre isso? O racismo acontece onde, somente na rua? Será que eu não percebo essa relação de racismo dentro da sala de aula? Que medida eu tomo
enquanto educador?”.
Nazaré aponta que não se pode esperar chegar o dia 20 de novembro para se discutir a formação de uma educação antirracista, até mesmo porque o racismo se dá, sobretudo, na relação cotidiana. Daí o questionamento sobre o que a comunidade escolar faz a respeito disso ao longo do ano todo, e não apenas em novembro.
“Quando eu digo que a responsabilidade de combater o racismo é de todas e todos nós é, principalmente de nós educadores. Nós temos uma ferramenta que transforma vidas, a educação, então eu preciso perceber isso no cotidiano da sala de aula, eu preciso trabalhar isso num processo de transversalidade, eu não posso achar que eu faço um evento pontual em novembro e que, com isso, eu estou combatendo o racismo porque eu não estou”, chama a atenção.
“Nós precisamos criar crianças antirracistas e esse é um papel de todos nós. Quando eu falo sobre a escola, estou falando da comunidade escolar como um todo. É o educador, é quem está no administrativo, quem está na portaria, é fazer um processo de formação constante e permanente”.