INÁCIO ARAUJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu neste domingo o ator Alain Delon, um dos maiores do cinema francês, aos 88 anos. A morte foi confirmada pela família do artista à agência AFP. Ele morreu em sua casa em Douchy-Montcorbon, na França, mas a causa da morte não foi divulgada.
Delon sofreu um AVC em 2019, poucas semanas depois de receber uma Palma de Ouro honorária em no Festival de Cannes, e, desde então, enfrentava problemas de saúde.
Em março do ano passado, o ator, que definiu sua vida como “bela”, reivindicou o direito a uma morte assistida –ou seja, induzida. Queria evitar o sofrimento dos hospitais, da dor, dos remédios que apenas encompridam a vida. Seu filho Anthony, do casamento com a atriz Nathalie Delon (que durou entre 1964 e 1969) seria o responsável por assisti-lo.
Ele foi um dos atores mais famosos do mundo, é certo. Mas podia ter sido diferente. Na vida de Alain Delon o que não falta são acasos.
Não falemos das atribulações do menino nascido em Sceaux, em 1935, cujos pais se separaram quando tinha quatro anos. Nem da expulsão de seis colégios que frequentou. Nem de sua passagem pela Marinha francesa, onde fez o serviço militar na antiga Indochina, e de onde foi expulso depois de roubar um jipe, dirigi-lo em alta velocidade e acabar com o carro tombado num córrego.
Estávamos em 1953, ainda não era famoso, longe disso, mas já era conhecido pela insubmissão. Depois, ele vive em Roma por um tempo, quando é detectado por David O. Selznick, o produtor de “E o Vento Levou”, entre outros, e convidado para ir a Hollywood, com um contrato de sete anos.
A condição era aprender a falar inglês. De volta a Paris, bem que ele começa seu aprendizado da língua, ao mesmo tempo em que vive de pequenos trabalhos, como o de garçom de bar, o que o acaba aproximando do mundo do crime –em particular da chamada gangue dos Trois Canards, nome do cabaré em Pigalle, bairro de Paris, onde costumavam se reunir.
Essa ligação marcará Delon para sempre como um associado do mundo do crime, já que da gangue fazia parte Jackie Imbert, morto em 2019, considerado um dos chefões do submundo de Marselha.
Mas haverá outra vida, em que o jovem Delon acaba sendo lançado no cinema graças à atriz Michèle Cordue, casada com o cineasta Yves Allegret, que convence o marido a dar um papel ao jovem, de quem ela era amante.
Assim, em 1957 ele acaba sendo lançado em “Uma Tal Condessa”. Mas Cordue durará pouco. Em 1958, conhece Romy Schneider, com quem manterá um romance até 1964 e a quem reencontrará em 1969 para filmar “A Piscina”.
O estrelato chegaria algum tempo depois, com “O Sol por Testemunha” (1960), famosa adaptação de “O Talentoso Ripley”, de Patricia Highsmith, dirigida por René Clement. No mesmo ano faz o papel central de “Rocco e Seus Irmãos”, de Luchino Visconti, que ganha o prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza.
Não havia mais dúvida sobre seu carisma. Sobre a beleza nunca houvera. Ator? O próprio Delon disse certa vez que era um ator, não um intérprete –que era como via Jean-Paul Belmondo, a outra grande estrela masculina do cinema francês do período. Um intérprete estuda, se prepara, representa. Delon era diferente: “Eu vivo meus papéis”.
Vida à beça, então, pois logo em seguida faria “O Eclipse” (1962), com Antonioni, depois, outra vez com Visconti, “O Leopardo” (1963). Depois de um intervalo em Hollywood, filmando com atores célebres em filmes menores, volta à França e a René Clement em 1966 com um papel em “Paris Está em Chamas?”.
Em 1968 filmaria com Louis Malle um dos episódios de “Histórias Extraordinárias”, no ano seguinte, “A Piscina”, de Jacques Deray.
Dito assim parece que seus anos 1960 foram marcados exclusivamente pelo cinema de prestígio. Não, Delon mantinha um equilíbrio perfeito entre os filmes “de arte” e o cinema comercial. Seu modelo de ator era, afinal, Jean Gabin, desde que o tinha visto em “Grisbi, Ouro Maldito” (1954), de Jacques Becker.
Delon não chegaria a filmar com Becker, que morreu prematuramente, em 1960, após fazer a obra-prima penitenciária “A um Passo da Liberdade”.
Mas a ideia do filme policial o acompanhou na amizade e na fidelidade ao cinema de Jean-Pierre Melville, o mais independente dos cineastas franceses de sua geração –a ponto de ter um estúdio próprio–, com quem filma, para começar, a obra-prima “O Samurai” (1967), e depois “O Círculo Vermelho” (1970), e “Expresso para Bordeaux” (1972), último filme desse diretor que com frequência o revezava, no papel de estrela, com Belmondo.
De Melville, Delon dirá que foi o melhor diretor com quem trabalhou. Não é um elogio pequeno para quem trabalhou com Visconti, Antonioni, Clement, Malle e, nos anos 1970, também Joseph Losey, com quem fez “O Assassinato de Trótski” (1972) e o mais bem-sucedido “Cidadão Klein” (1976).
Sem falar de Valerio Zurlini, que, com “A Primeira Noite de Tranquilidade” (1972) revelaria um Delon cativante não pelos modos combativos, pelo desempenho atlético, nem pela beleza desconcertante. Mas pela profunda melancolia que marcava o personagem.
Gângster, assassino, professor, nobre, burguês. Se foi apenas um ator –“acteur”, em francês– e não um intérprete –“comédien”–, como pretendia, ele soube viver seus inúmeros papéis com intensidade e vibração. Mesmo a do mal-estar de existir, como o professor de “A Primeira Noite”.
Mas seria pouco limitar a carreira de Delon a esses grandes diretores, mesmo que nessa lista ainda falte Jean-Luc Godard, com quem fez “Nouvelle Vague” (1990) ou o alemão Volker Schlöndorf, de “Um Amor de Swann” (1984), ou mesmo o irregular Bertrand Blier de “Quartos Separados” (1984).
É preciso lembrar que essa é uma época de ótimos artesãos no cinema francês. Outra ligação importante foi com Jacques Deray, com quem filmaria “Borsalino” (1970) ao lado de Jean-Paul Belmondo, entre outros.
Ele trabalhou com cineastas de nome menos ilustre, mas nem por isso dignos de esquecimento, que o consagraram como um dos principais atores do filme policial moderno. Cineastas como José Giovanni, Georges Lautner ou, sobretudo, Herni Verneuil, que lhe daria o prazer de trabalhar com seu ídolo maior, Jean Gabin, no grande sucesso que foi “Os Sicilianos”, que ainda tinha o italiano Lino Ventura e música do também italiano Ennio Morricone.
É também nessa época que suas ligações criminais, novamente, parecem não se limitar ao cinema. Em 1969, quando filma “A Piscina”, vê-se envolvido no “caso Markovic”. Stevan Markovic era seu guarda-costas e morreu assassinado. O acusado pelo crime, François Marcontani, era velho amigo de Delon, dos tempos de Pigalle. De todo modo, Delon estava longe do local do crime, filmando, e ficou o dito pelo não dito.
Mas, como que para confirmar sua proximidade com o submundo, ele abre um haras, no mesmo ano, em sociedade com a atriz Mireille Darc e Jackie Imbert, o chefão marselhês.
Suas ligações perigosas prosseguiam, em todo caso, mas não interferiam em sua carreira de ator, que prosseguiu, mesmo que em pequenos papéis ou aparições como ele mesmo, até 2019, e mesmo de diretor, tendo realizado quatro filmes nos anos 1980.
Mas, depois de tudo que experimentou entre os anos 1950 e 1980, a partir daí começava o tempo das homenagens, do filme com Godard, dos prêmios pelo conjunto da obra. Do mito, para resumir.