Pará

Projeto que compara aborto ao homicídio seria inconstitucional

Segundo advogada, a Câmara dos Deputados não pode aprovar leis contra as mulheres sem debate e sem levar em conta os direitos adquiridos, principalmente em caso de meninas vítimas de violência sexual Foto: Ian Maenfeld /Fotoarena/Folhapress) ORG XMIT: 2554966
Segundo advogada, a Câmara dos Deputados não pode aprovar leis contra as mulheres sem debate e sem levar em conta os direitos adquiridos, principalmente em caso de meninas vítimas de violência sexual Foto: Ian Maenfeld /Fotoarena/Folhapress) ORG XMIT: 2554966

Carol Menezes

O assunto da semana definitivamente foi a questionável tramitação do projeto de lei 1.904/24, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, que equipara ao homicídio o aborto de gestação acima de 22 semanas, dentre outras questões. Repercutiu de forma extremamente negativa, principalmente entre mulheres, o fato de que, se o texto for aprovado como está, a mudança alcança e pode impedir as três situações em que a interrupção da gravidez é permitida no Brasil sem limite de tempo gestacional – quando há risco de vida para a mãe, por estupro, e quando o feto é anencéfalo.

Para além de toda a discussão social em torno dessa proposta, defendida ardorosamente pela numerosa bancada conservadora do Congresso Nacional, que se apoia no argumento “pró-vida”, o meio jurídico já alerta para as inconstitucionalidades presentes na matéria, o que muito provavelmente seria motivo de questionamentos pelas cortes superiores.

Isso ajuda a entender porquê, no apagar das luzes da última quarta-feira, 12, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), correu para, em apenas 23 segundos, aprovar a tramitação em regime de urgência do projeto. Ou seja, quando o texto segue direto para votação em plenário, sem passar pelas comissões permanentes da casa, onde geralmente a viabilidade e constitucionalidade dos projetos são verificados. Sabe-se ainda que Lira tem interesse em garantir amplo apoio para eleger um sucessor da sua confiança para a presidência da Câmara dos Deputados, em janeiro de 2025.

“A primeira questão é que a gente tem um princípio importante do ponto de vista constitucional e também internacional de defesa dos direitos humanos, que é o princípio da vedação do retrocesso. Não se pode, de uma hora para outra, restringir um direito constituído com base em muita luta, em muita articulação dos movimentos de mulheres e também internacionalmente. Não pode uma mulher que teria direito ao aborto legal em caso de estupro ser tratada como uma criminosa”, explica a advogada e professora doutora Luanna Tomaz, que tem Direito das Mulheres como uma de suas áreas de atuação e pesquisa, e é autora de quatro livros com temáticas relacionadas a violência contra mulheres.

Ela atenta ainda para o fato de que a dignidade da pessoa humana e o direito à integridade sexual são garantidos pela Constituição Federal, e que, portanto, forçar uma mulher vítima de estupro a levar em frente uma gestação configura violação desses direitos.

“Se esse projeto for adiante, tem sim grandes possibilidades de ser questionado no Supremo Tribunal Federal, então agora o objetivo é que se evite a aprovação de algo dessa natureza, até para evitar o desgaste entre poderes”, pondera ela, que também é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará e coordenadora da Clínica de Atenção à Violência (CAV/UFPA).

Hoje, o aborto só é permitido em três situações, que são gestação decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal. Foto: Irene Almeida

Luanna vê o PL 1.904/24 como uma resposta à liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes que derrubou uma orientação 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM) proibindo a assistolia fetal a mulheres vítimas de estupro a partir de 22 semanas de gestação, sob a justificativa de que a partir desse marco temporal há chance de vida fora do útero. A normativa foi considerada inconstitucional e sem embasamento científico.

A assistolia fetal consiste na injeção de determinados agentes farmacológicos, geralmente cloreto de potássio, para interromper os batimentos cardíacos do feto, que depois é retirado da barriga da mulher para completar o procedimento do aborto. O método é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) quando a gestação é interrompida acima de 20 semanas, segundo as últimas diretrizes divulgadas em junho de 2023.

“Então surge um projeto dessa natureza, que traz para o Legislativo o palco de uma cena de horrores para os direitos reprodutivos”, afirma a advogada. Ela teme que mulheres e meninas tenham revogados direitos adquiridos e garantidos desde 1940. “Acho que o presidente da Câmara autorizou um projeto desse tramitar em regime de urgência como uma forma de negociar com os setores mais conservadores um eventual apoio político, até porque se aproximam as eleições para a presidência. Isso mostra o quanto os direitos das mulheres são colocados na mesa de negociação muito facilmente para garantia de poder, e isso é uma coisa sobre a qual a gente deve refletir”, observa.

A partir dessa visão, Luanna Tomaz lembra que, ao longo dos últimos anos, os direitos das mulheres têm sido duramente atacados, seja com cortes de recursos para enfrentamento a violência, seja com políticas completamente equivocadas no âmbito da violência sexual para fortalecer politicamente setores mais conservadores que usam as chamadas “pautas dos costumes” para se sustentar politicamente

“Se dizem defensores da família, mas na verdade não o são. Estão pautando e defendendo questões extremamente perversas e violadoras dos direitos das mulheres. O Brasil tem cada vez mais lidado com aumento dos casos de estupro, de violência contra as mulheres. Em especial mulheres negras, meninas, adolescentes, crianças. Aprovar um projeto como esse é naturalizar esse cenário, obrigar meninas a parir. Se fortalece um cenário de violência sexual, de gravidez na adolescência, então isso é um cenário de grave violação de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, finaliza.