Agência O Globo
O nome dela é Gabriela Medeiros. Mas poderia ser Buba – e é, até certo ponto. Ou não. Difícil traçar a fronteira entre ficção e realidade, ou entre personagem e intérprete, como avalia Gabriela, artista de 22 anos que assume o papel de Buba na novela “Renascer”. Uma porção considerável da vida da atriz está toda lá no folhetim exibido pela TV Globo. A começar pelo fato de que ela, assim como Buba, é uma mulher transexual. E, claro, não apenas isso.
“Eu e Buba viramos uma só. Tem muita verdade cênica em meu olhar. Ela é parte de mim, parte da minha história”, considera Gabriela.
Não haveria como ser diferente, sobretudo em um país marcado pelo conservadorismo. O capítulo 100 da trama – que foi ao ar na quinta-feira à noite, véspera do Dia Mundial contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia – descortina um bom exemplo do que a artista quer dizer.
Em uma viagem à pequena cidade onde cresceu, Buba teve um doloroso reencontro com os pais (interpretados por Malu Galli e Guilherme Fontes). A jovem psicóloga descobriu que eles inventaram, para pessoas próximas, que ela havia morrido, a fim de esconder a mudança de gênero da filha. Traumas decorrentes de rejeição e violência, uma vivência comum à grande parcela da população trans no Brasil, foram trazidos à tona. A atriz conta que “deixou, literalmente, um pedaço de si nessa sequência”, que ganha um importante desenvolvimento ao longo das próximas semanas.
Tal como Buba, Gabriela – também uma mulher trans que quase se formou em Psicologia, mas abandonou o curso para imergir no universo artístico – viveu o processo de transição de gênero, há quatro anos, sem qualquer apoio da família. A atriz é sucinta ao tocar no assunto. E não cita os pais ao ser questionada sobre isso.
“O processo (de transição de gênero) foi bastante interno comigo mesma. Busquei ajuda psicológica durante essa fase e quis me conectar comigo mesma, ir de encontro ao meu âmago. Tive um amigo muito importante, Gabriel, que foi o meu alicerce, que me acolheu… Foi ele que esteve ao meu lado junto a algumas amigas”, rememora a paulistana.
A relação com a arte, sobretudo a pintura – e posteriormente o teatro, na adolescência -, foi elemento preponderante ao longo dessa jornada solitária. Gabriela lembra que, da infância à puberdade, era perseguida por uma tremenda sensação de desconforto. Olhava-se no espelho e não se reconhecia no corpo refletido. Detinha-se então no seguinte pensamento: “Quando crescer, vou me tornar uma borboleta.” Nessa época, repetia a frase, mentalmente, como um mantra. Hoje, ela entende que a fala não era só discurso ingênuo de criança.
“Sinto que as minhas asas de borboleta ainda estão crescendo. A vida se trata de uma grandiosa metamorfose. Sou uma lagarta desabrochando nesse mundo”, ela divaga, detendo-se no passado. “Fui uma criança bem solitária no meu mundinho particular. Passava horas desenhando e pintando. Minha avó me incentivava, então comprava lápis, canetinhas e giz. E a minha outra vovó, materna, me estimulava a pintar pano de prato com ela. É a arte que me cura de todos os meus processos. Atuar é uma profunda catarse do eu”.
FAMA REPENTINA – Entre reconhecimento e críticas
O trabalho de destaque no remake da novela de Benedito Ruy Barbosa, originalmente exibida em 1993, foi conquistado após a realização de testes na emissora. Até então, Gabriela havia participado apenas de uma produção na televisão, a série “Vicky e a musa” (2023), do Globoplay.
Autor de “Renascer”, Bruno Luperi deposita na trama de Buba algumas das maiores novidades da história, em comparação ao que foi ao ar há três décadas. O papel defendido, em 1993, pela atriz Maria Luisa Mendonça era uma pessoa intersexual (à época, utilizava-se o termo “hermafrodita”, que caiu em desuso). A narrativa que se desenrola a partir de agora, portanto, é inteiramente “inédita”.
“Toda cena tem que dar um passo adiante nessa temática”, frisa Luperi. “É compromisso de todos os capítulos entreter, informar e apresentar discussões pertinentes em escala nacional. ‘Renascer’ está inteiramente costurada pela linha do tempo presente. Acredito que a novela, no Brasil, se firma como instrumento de transformação e união do país, e que tem, por natureza, essa missão de desatar tabus”.
Gabriela concorda com o autor. E celebra o fato de receber várias mensagens positivas, por meio das redes sociais, de gente que está lidando com as mesmas questões da personagem (e da atriz) – e que agora se vê espelhada em ambas as figuras. Conta que é abordada, nas ruas, por pessoas trans, que choram ao encontrá-la.
A fama repentina, porém, também traz dissabores. Ao longo da novela, Gabriela já foi alvo de críticas, muitas delas agressivas, por sua performance na TV. Ela se defende. E frisa que já não fica mais tão ligada no que é dito nas redes. “Melhor assim”, conclui.
“O público não compreendeu muito de cara o tom que eu estava dando para a personagem. Buba é para dentro mesmo. Ela é uma rosa cheia de espinhos que foi altamente traumatizada pelo histórico familiar, além de se esbarrar numa relação abusiva que a anula completamente. Mas ela irá desabrochar cada vez mais até o fim da novela”, adianta a artista.
Os eventuais reveses não amolecem uma certeza que a atriz mantém rígida dentro de si: Gabriela quer – mais e mais – aprimorar o ofício artístico. E não tira isso de vista.
“Tenho um sonho que pode parecer clichê, mas quero muito fazer alguma personagem de época dos anos 1940, 50 ou 60”, diz. “E quero interpretar uma personagem em que a história não gire em torno dela ser trans, e sim de ser uma mulher, seja essa mulher como for, com suas questões, anseios, medos e inseguranças”.