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"O Auto da Compadecida": uma pérola do cinema fantástico

Sim, o título está correto. “O Auto da Compadecida” é um belíssimo exemplar do nosso cinema fantástico. Ora, mas não se trata de uma comédia? Também, claro. Afinal, quem gosta de tristeza é o Diabo, já diria Nossa Senhora. O próprio Ariano Suassuna admitia esse traço em sua obra. Com o pé fincado na brasilidade, ele marcava seu ponto de vista sobre o mundo, as pessoas e as classes sociais de forma simples, sem, contudo, jamais resvalar no simplório, e sempre extrapolando a realidade. “Existe no que escrevo uma dose de fantástico e de poético que vem da literatura de cordel e de outros tipos de escritos pelos quais eu tenho muita admiração”, afirmou o autor, certa vez. Assim, das artimanhas mirabolantes de João Grilo para sobreviver na Terra ao seu duelo no juízo final, e a fé arraigada em cada cantinho, com os pecados cometidos em nome dela ou apesar dela, por exemplo, tudo passa por esse questionamento criativo das coisas mundanas e que é transportado para a tela com uma precisão absurda.

Absurdo aqui, aliás, é uma palavra-chave. O tom farsesco permeia todo o filme, dirigido por Guel Arraes a partir de uma minissérie para a TV Globo, com episódios que beiram o surreal, como o enterro de uma cachorrinha em latim, uma gaita que ressuscita os mortos… São vários os exemplos. E olhem que muitas cenas ficaram de fora do corte final na adaptação para os cinemas, como o célebre “gato que descome dinheiro”. Mas sabem o mais impressionante? Nada disso soa como algo deslocado do dia a dia daqueles personagens. Mais ainda: é impossível não se identificar com as situações apresentadas. A pequena Taperoá, no sertão da Paraíba, é, de fato, um microcosmo do Brasil, com todos os grupos da sociedade representados: burguesia, poder político, clero e, óbvio, o povo.

São as relações entre esses setores, com um querendo tirar vantagem do outro, que movem a trama. Como João Grilo e Chicó estão do lado mais fraco da corda, é totalmente deles a nossa torcida. “A esperteza é a arma do pobre”. Ariano, acusado de ter feito um panfleto contra a Igreja, reagiu, dizendo que era católico e que criticava, sim, os maus padres, os maus bispos, os maus patrões, os maus políticos. Por isso, essa é uma crítica que sempre vai se manter atual (a peça é de 1955, o filme de 2000). E o lado bom é que em nenhum momento ela é diminuída pelo humor, pelo contrário, torna-se cada vez mais ácida à medida que o filme avança. Isso se deve, além do texto primoroso, ao acerto da escalação do elenco, a começar pela química de Matheus Nachtergaele e Selton Mello.

Nachtergaele faz um tipo expansivo, astucioso, com uma lábia que contrasta com o seu jeito franzino. Já Mello interpreta a ingenuidade em pessoa, lento das ideias e empurrado para frente pelo companheiro; mas é o seu bom coração, por outro lado, que segura os exageros de Grilo. Eles se completam e encontram na composição dos atores uma morada, a meu ver, definitiva. Dos trejeitos de ambos aos olhares altivos de um lado e mansos de outro, formam, sem sombra de dúvida, uma das grandes duplas do cinema. E eles não estão sós. Todos têm espaço para brilhar, especialmente Marco Nanini e seu cangaceiro Severino de Aracaju, que está implacavelmente perfeito. Ameaçador, devoto de Padim Ciço, com um passado trágico, ele possui uma ambiguidade que o torna uma figura bastante complexa. Já o padeiro Eurico e sua “digníssima esposa safada” Dorinha, além do padre João e do bispo têm arcos mais diretos, mas não menos eficientes, com um timing cômico excepcional de Diogo Vilela, Denise Fraga, Rogério Cardoso e Lima Duarte, respectivamente. Mesmo participações pequenas, como as de Bruno Garcia, como Vicentão, e Enrique Diaz, como o capanga de Severino, são dignas de nota.

Além disso, como já citado, por ter sido feito originalmente para a televisão, poderíamos até dizer que o filme carece de inventividade na parte técnica, como enquadramentos mais elaborados e até mesmo efeitos visuais mais apurados. Mas nem isso depõe contra, tamanha a força da história. E no que diz respeito aos efeitos, pelo contrário até, pois empresta ao ato final, que já tem naturalmente o tom de fábula, um ar teatral que vai ao encontro das raízes da obra, dando aos atores um cenário totalmente apropriado à resolução do conflito – e colocando Fernanda Montenegro, como Nossa Senhora, no seu devido lugar: o pedestal.

Por fim, o que torna “O Auto da Compadecida” tão impactante é a sua capacidade de se comunicar com as pessoas de maneira honesta. “Se o texto fala de bem e mal, de certo e errado, ele jamais se torna moralizante”, disse a crítica de teatro Barbara Heliodora. Ou seja, ele apenas apresenta os fatos como eles são e isso gera uma identificação. O fantástico, no caso, é mero artifício para retratar esse cotidiano do brasileiro que precisa enfrentar dia após dia hipocrisias, desmandos e opressões, e fazer o que estiver ao seu alcance para ultrapassar esses obstáculos, com a certeza de que cada um terá o seu julgamento, seja na Terra ou no Céu. Aí vai da crença de cada um. Mas, de todo modo, não custa nada ir decorando o versinho: “Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! / A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer / A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé / Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler / Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher / Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!”.

ONDE ASSISTIR

  • “O Auto da Compadecida” está disponível para streaming no Globoplay.

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