POR UIRÁ MACHADO/FOLHAPRESS
O sociólogo André Botelho é um dos autores do manifesto “Neste 7 de Setembro, seja independente”, uma iniciativa cujo objetivo é recuperar o caráter cívico das festas pelo Bicentenário da Independência do Brasil.
Organizado pela Articulação das Ciências Sociais (movimento que reúne quatro associações das ciências sociais) e contando com o apoio de diversas entidades acadêmicas, o documento defende que o 7 de Setembro seja um marco na luta contra ameaças à democracia.
Nesta entrevista à reportagem, Botelho afirma que é muito grave a efeméride não ser usada pelo governo para uma reflexão sobre o Brasil. E mais grave ainda o seu enviesamento em favor de um grupo particular, com fins eleitorais, como faz o presidente Jair Bolsonaro (PL).
“É um sequestro da Independência”, diz ele, “[de] um momento que deveria ser uma grande festa cívica envolvendo o debate entre diferentes segmentos da sociedade.”
Botelho também fala sobre o sentido histórico do 7 de Setembro, a participação das Forças Armadas, as ameaças autoritárias e o uso da palavra “liberdade” pelo bolsonarismo.
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PERGUNTA -O 7 de Setembro deste ano marca o Bicentenário da Independência do Brasil. Esse fato, contudo, foi deixado em segundo plano pelo governo Bolsonaro, que prefere apostar numa retórica político-eleitoral. Isso gera algum prejuízo para o país?
ANDRÉ BOTELHO – São muitos efeitos negativos. No Bicentenário da Independência, era de esperar um programa em torno da reflexão do que significa essa data. Nesses 200 anos de um Estado livre, quais são as conquistas? O que ainda está por se alcançar? Quais os significados atuais da Independência?
A simples omissão em relação a esse programa já é grave. E é muito mais grave o enviesamento. A Lilia [Schwarcz] está usando a categoria de sequestro [no livro “O Sequestro da Independência – Uma História da Construção do Mito do 7 de Setembro] com a qual estou inteiramente de acordo.
É um sequestro da Independência. Porque um grupo está se apropriando do significado da data com fins eleitorais. E não é qualquer grupo; é o que está no governo.
A ideia de sequestro é muito apropriada, porque ela sugere a um só tempo esse desprezo pelo conhecimento histórico, essa omissão, mas também essa atitude política de se apropriar e ressignificar, para fins muito particulares, um momento que deveria ser uma grande festa cívica envolvendo o debate entre diferentes segmentos da sociedade.
P – O uso político de datas comemorativas não é exclusividade do governo Bolsonaro, embora declarações golpistas, como as do ano passado, não possam ser consideradas normais em uma democracia. Quanto ele foge dos parâmetros aceitáveis para eventos dessa natureza?
AB – Foge bastante, e o modo como essas datas são comemoradas é muito revelador da estrutura das sociedades. No plano histórico, assim como quando se compara uma sociedade com outra, são muito diferentes as formas de comemoração, embora elas talvez tenham em comum a tentativa de afirmar uma coesão.
O que acontece hoje -e particularmente desde o 7 de Setembro do ano passado- é uma espécie de ameaça. Quer dizer, essa simbologia que, guardados todos os senões, é de congraçamento, passa a ser uma simbologia de ameaça violenta.
Porque o que ela pretende comunicar é a força de um segmento que pode se sobrepor ao conjunto da sociedade, evocando uma espécie de visão hobbesiana, como se houvesse uma parte de fora da sociedade que pudesse reorganizá-la contra a própria vontade da sociedade e contra princípios básicos em uma vida democrática.
P – A aposta nessa agenda divisiva no 7 de Setembro é ainda mais contraditória num país que teve a peculiaridade de não ter se fragmentado no processo de independência?
AB – O Brasil é um país que, historicamente, tem lidado tanto com fatos como com representações que tornam muito difícil pensar as divisões. Porque a gente tem uma longuíssima tradição de conciliação. A própria Independência, a rigor, não só não fragmentou como juntou duas colônias portuguesas que eram diferentes do ponto de vista administrativo.
Mas a ideia de unidade social é um problema que se repõe a cada geração e que não comporta respostas simples. Há uma série de fatores econômicos, institucionais, sociais e culturais que permitem essa identificação em meio a tantas diferenças e desigualdades.
[A agenda do Bolsonaro] reforça o divisionismo. Ela é uma espécie de justificativa moral para aqueles que já creem no bolsonarismo. A intenção é reforçar as bases da crença desse grupo de sustentação.
O preocupante é que a comunicação se faz com base na violência: promovendo e elogiando a violência simbólica, mas também física, como forma de afirmação.
Agora, ela não tem capacidade de persuasão e convencimento [dos outros]. Em particular numa data como essa, em que, na memória da sociedade, é exatamente o contrário. É o congraçamento.
P – No ano passado, a ideia de golpe de Estado marcou o 7 de Setembro. Neste ano, após os manifestos em defesa da democracia, o sr. vê clima para Bolsonaro tentar uma manobra golpista?
AB – Essa realmente é uma pergunta muito difícil, porque a gente tem lidado com uma racionalidade -eu vou chamar assim: uma racionalidade- muito diferente daquela com que estamos habituados.
Eu tendo a responder que as condições políticas, econômicas e sociais para tentativas radicais são muito pequenas. O que não impede que, justamente por conta dessa racionalidade própria, messiânica, isso aconteça.
E, de alguma forma, essas ameaças já estão cumprindo o seu papel. O medo já foi incitado. O risco ao pleno exercício democrático numa data cívica como essa já está acontecendo. Ainda que não nos termos ou com a dimensão pretendida, o bem público já foi atingido. O que é gravíssimo.
P – O sr. mencionou uma racionalidade diferente. Isso ajuda a explicar a distorção retórica operada pelo bolsonarismo, que usa “democracia” e “liberdade” como alguns dos motes do 7 de Setembro?
AB – O bolsonarismo não deve ser pensado como força social que exista fora da sociedade brasileira. A força dele se deve à capacidade que ele tem de reunir, e até mesmo fortalecer, determinados valores e práticas que estão muito enraizados na nossa história e na nossa estrutura social.
A questão da liberdade é chave. O sentido de liberdade que o governo Bolsonaro e o bolsonarismo usam tem um eco muito grande na sociedade e na cultura brasileira.
Sérgio Buarque de Holanda, no livro “Raízes do Brasil”, [diz algo] que eu acho fundamental para a gente entender o Brasil e o Bolsonaro: é o que ele chama de cultura da personalidade dos ibéricos.
O que é isso? É uma concepção muito particular do indivíduo que é o oposto da noção de individualidade burguesa. A noção de individualidade burguesa pressupõe uma igualdade de todos nós. Por que somos indivíduos? Porque somos iguais. Então somos sujeitos aos mesmos deveres e somos portadores dos mesmos direitos.
A individualidade que o Sérgio identificou como um legado ibérico na sociedade brasileira é o oposto. Ela é afirmação de um eu contra aquilo que nos unifica. Então é porque eu me destaco do meu grupo que eu sou um indivíduo. Ou seja, não é aquilo que me faz igual a você -e que precisa do bem comum para existir-, mas é o oposto: é aquilo que me diferencia, que me separa.
P – Essa noção ainda persiste?
AB – As pesquisas sobre mobilidade social no Brasil, por exemplo, mostram que, quando as pessoas são questionadas sobre o sucesso, elas vão sempre se referir ao esforço pessoal. E o que é mais intrigante é que também o fracasso na mobilidade social é interpretado pelas pessoas como algo pessoal.
É uma percepção do indivíduo que é o oposto da percepção burguesa clássica. Não se percebe que as possibilidades de ascensão são construídas coletivamente.
E o bolsonarismo consegue capturar isso. Quando ele comunica a ideia de liberdade, é sempre no sentido contra o bem comum. Como se o bem comum fosse algo que impedisse a liberdade. Quer dizer, aquilo que garante a liberdade de todos nós -o bem comum- é ruim.
A liberdade que ele mobiliza é a liberdade que pressupõe a desigualdade. Não me parece à toa que a categoria de liberdade seja tão central no Brasil
P – Bolsonaro tem dado muita ênfase à participação das Forças Armadas no 7 de Setembro. A comemoração da Independência sempre teve esse caráter militar?
AB – Os militares são uma força política no Brasil desde antes da ditadura militar e sempre estiveram disputando espaço. Mas o caráter que isso [o 7 de Setembro] assumiu na ditadura militar, e em particular em 1972, é específico. Não apenas pela dimensão, mas pelo sentido que se amarrou ali, associando a Independência ao militarismo.
Foi feita toda uma reinterpretação para associar a Independência a um movimento militar que, historiograficamente falando, não existe. E, antes da ditadura, as próprias paradas militares eram momentos de congraçamento. Não eram uma ameaça; não eram a demonstração de uma força que pode se sobrepor à sociedade.
Foi na ditadura militar que adquiram essa feição. E hoje, pelo histórico da construção do governo Bolsonaro e do bolsonarismo, ganhou esse lugar central novamente. Mas isso mais no imaginário bolsonarista do que na sociedade brasileira como um todo.
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RAIO-X
ANDRÉ BOTELHO, 52
Doutor em ciências sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e presidente da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). É autor de “O Retorno da Sociedade: Política e Interpretações do Brasil” (Vozes, 2019), entre outros livros.