Cintia Magno
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Responsável por plantar de 8 a 10 mil hectares por ano, o Pará é um dos territórios onde mais se planta cacau no mundo, além de deter uma das maiores taxas de produtividade: uma média de 925 kg por hectare. Essas e outras taxas de crescimento da cacauicultura mantidas pelo Estado não são à toa. Aliando o potencial natural da região com o desenvolvimento de pesquisa científica e a aplicação de políticas públicas, o Pará foi levado ao protagonismo do cultivo do fruto no cenário nacional.
Nativo da região amazônica, o cacau é cultivado no país desde o final do século 17, quando o então rei de Portugal determinou que o cacau deveria ser cultivado no território ainda marcado pela colonização. Mais tarde, ainda em 1746, a cultura foi levada para o Estado da Bahia, que dominou a produção nacional durante muito tempo e atingiu o seu ápice na década de 1980, levando o Brasil à posição de segundo maior produtor mundial, sendo responsável por cerca de 400 mil toneladas por ano àquela época.
A concomitância de diferentes fatores, porém, incluindo a chegada da vassoura de bruxa, acabou por ocasionar uma queda vertiginosa na produção da Bahia e, consequentemente, do país. Com a criação da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão ligado ao Ministério da Agricultura e Pecuária que em fevereiro de 2024 completou 67 anos de existência, a produção vem sendo gradativamente recuperada.
No cenário atual, o Estado do Pará se mantém na liderança nacional da produção do cacau, sendo responsável por 53,3% da produção nacional do fruto, segundo registro da base de dados da Produção Agrícola Municipal (PAM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativa ao ano de 2022.
Para que se chegasse a tal desempenho, porém, uma série de medidas foram implementadas ao longo de mais de cinco décadas. No Pará, a maior força produtiva do cacau iniciou em meados 1970, quando foi criado o primeiro plano para o desenvolvimento da cacauicultura no Estado do Pará.
A Ceplac já existia à época e foi convidada pela então Secretaria de Agricultura do Estado para ser um parceiro técnico na transferência de tecnologia para a cacauicultura. Com o plano apresentando bons resultados e sendo expandido, a partir de 1975 o governo transferiu para a Ceplac a responsabilidade do desenvolvimento da cacauicultura no Estado.
Coordenador da Superintendência Regional de Desenvolvimento da Lavoura Cacaueira nos Estados do Pará e Amazonas da Ceplac, Jose Raul dos Santos Guimarães explica que através dos estudos técnicos e científicos, da geração de tecnologia e dos processos de inovação tecnológica, a Ceplac concebeu um sistema produtivo viável do ponto de vista técnico agronômico, socioeconômico, ecológico e ambiental para a cacauicultura na Amazônia, o cultivo do cacaueiro em Sistemas Agroflorestais.
“Esse modelo é perfeitamente adaptado às condições climáticas e de solo da Amazônia porque o centro de origem botânica do cacau é a Amazônia”.
Para que esse modelo fosse desenvolvido, Raul Guimarães lembra que um trabalho iniciado ainda em 1965 possibilitou a realização de um levantamento nas bacias hidrográficas do bioma amazônico, o que se conhece no meio científico como prospecção técnica. A partir desse trabalho foi possível realizar a coleta do material que gerou o banco de germoplasma mantido pela Ceplac na estação de pesquisa localizada no município de Marituba, e que depois levou à criação de campos de produção de sementes que permitem à instituição distribuir sementes para os agricultores plantarem cacau no Pará desde a década de 70, sem falhar.
Hoje, a Ceplac produz de 13 a 15 milhões de sementes de cacau por ano e essas sementes são disponibilizadas aos agricultores de acordo com um planejamento estratégico, tático e operacional. A partir de um cronograma de produção previamente definido nas estações, é criado um cronograma de distribuição, onde os agricultores solicitam as sementes no período de Janeiro a Março de cada ano, e a partir de Maio inicia-se a distribuição das sementes pela Ceplac.
“O material coletado, com suas variedades de cacau, em diversas bacias hidrográficas da Amazônia, permitiu à Ceplac implantar esse material aqui na Estação para estudo genético. Todo esse material foi estudado detalhadamente e caracterizado morfologicamente”, explica o superintendente. “Então, essa coleção genética foi instalada e isso nos permitiu implantar os campos de produção de sementes de cacau. Nós temos essa estação em Marituba, temos outra na mesorregião sudeste do Pará, em Tucumã, e nós temos uma estação na mesorregião sudoeste, no município de Medicilândia”.
A partir desse trabalho, Raul esclarece que a cacauicultura pode ser instalada no Estado do Pará em regiões que foram prospectadas e estudadas do ponto de vista técnico e científico, e do ponto de vista da sua viabilidade para implantar um cultivo que está no sub-bosque em estado nativo, mas que foi domesticado.
“Esse sistema de produção reúne todas as tecnologias que o grupo de pesquisadores da Ceplac gerou e concebeu e que foram testadas e validadas e, portanto, podem ser disponibilizadas aos agricultores”, aponta. “Essas sementes, esse material que a Ceplac distribui aos agricultores é altamente produtivo, tem um elevado poder produtivo, resistente a pragas e doenças. Essa é uma das razões que levaram a cacauicultura a chegar no estágio que chegou”.
E no que depender da tecnologia desenvolvida e das condições de competitividades encontradas no Pará, a perspectiva é que a cadeia de valor do cacau ganhe ainda mais importância no Estado. Raul conta que, atualmente, uma média de 1.500 novos agricultores são incorporados à cadeia paraense do cacau, um interesse crescente e que encontra mercado certo.
“Nenhum produtor corre o risco de não vender o seu produto. É uma cultura que tem mercado garantido pela própria estrutura de mercado que existe na escala local, regional, nacional e internacional”, avalia o superintendente regional da Ceplac. “O Pará tem área para expandir. Essa é uma grande vantagem comparativa, por exemplo, se você comparar com a África, que já não tem mais área para expandir, são áreas de cacau muito antigas. E aqui no Pará nós temos uma cacauicultura que é bem mais nova, inclusive comparada com a da Bahia”.
Em resumo, um programa de desenvolvimento da cacauicultura com alta performance, indicadores conjunturais ou socioeconômicos e agroambientais expressivos fizeram com que o Estado do Pará saísse, no final da década de 60 e início da década de 70, de um modelo de produção tipicamente extrativista, para um atual modelo altamente tecnificado, competitivo no que se refere ao uso do solo e dos recursos florestais e que é capaz de potencializar a biodiversidade ao mesmo tempo em que fortalece a bioeconomia na Amazônia.
Mas Raul Guimarães lembra que tudo isso só foi possível através do conjunto de ações empenhadas não apenas pela Ceplac, mas também pelos parceiros que foram se somando à atuação ao longo dos anos.
“Se nós fizermos uma análise comparativa, perceberíamos que houve uma evolução fantástica porque, na década de 70, poucos parceiros estavam junto com a Ceplac na condução dos programas. Era basicamente a Ceplac, o Governo do Estado, os agentes financeiros e a hoje Emater, então, tínhamos uma meia dúzia de parceiros”, lembra o superintendente.
“Hoje, temos muitos parceiros, como as organizações de produtores, sindicatos e associação de cooperativas, a FAEPA, a FETAGRI, outras organizações da estrutura do Estado como a Sedap, que é o principal parceiro da Ceplac na condução do programa, mas também a Emater, o Ideflor-Bio, a Semas, a Sedeme e ainda temos a academia, como a Ufra, a UFPA, os institutos federais, que são parceiros importantes na área de inovação da ciência e da tecnologia na geração do conhecimento técnico-científico”.
Produção científica é importante aliada da cadeia produtiva
Seguindo a tradição que ajudou a fortalecer a cadeia produtiva do cacau no Estado do Pará cinco décadas atrás, a produção científica segue desempenhando papel importante e fundamental para o fortalecimento e a expansão da cadeia cacaueira paraense.
Importante aliada na produção deste conhecimento, a Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) mantém projetos que pesquisam a cacauicultura no Estado. Motivo de preocupação não só no passado, mas ainda hoje, as pragas que podem vir a acometer os cacaueiros são o foco de um software desenvolvido pelo grupo de pesquisa do Núcleo de Pesquisas em Computação Aplicada (NPCA) da Ufra campus Paragominas. Através do uso de Inteligência Artificial, o programa pretende auxiliar produtores a identificar pragas em plantações de cacau amazônico, evitando perdas na produção.
IMPACTO
Professor da Ufra campus Paragominas e líder do grupo de pesquisa do NPCA, Marcus de Barros Braga usa o exemplo do impacto devastador gerado pela propagação da vassoura de bruxa nas plantações de cacau na Bahia anos atrás para lembrar que, quando se trata dessas doenças, não basta apenas remediar, mas é preciso tentar se antecipar a elas. E é isso que pretende o software desenvolvido pelo grupo de pesquisa que ele coordena. “Se você consegue ter um diagnóstico precoce, quando a doença ainda está em poucos frutos, em uma área de pouca abrangência, você consegue se antecipar a esse crescimento da doença que se espalha como uma praga mesmo”, explica. “Essa é uma grande motivação porque essas doenças causam um prejuízo financeiro anual da ordem de muitos milhões”.
Sediado no campus de Paragominas, que é uma região fortemente ligada ao agronegócio, desde 2019 o grupo de pesquisa já vinha experimentando algumas tecnologias, especialmente a inteligência artificial, para tentar detectar algumas doenças, como doenças do milho e doenças da banana, por exemplo. Posteriormente, devido à importância da cadeia do cacau no Pará, o grupo também decidiu trabalhar em um projeto mais amplo para essa cultura.
“Nós fizemos um projeto a nível de Estado para desenvolver uma aplicação que usa a inteligência artificial para fazer o diagnóstico fácil, para o produtor que está na ponta poder diagnosticar. Para, a partir de uma imagem do fruto dele, ele poder saber se já está tendo contaminação por vassoura de bruxa ou por uma das outras doenças que são clássicas da cadeia do cacau”, explica Marcus Braga. ““A gente aplica uma tecnologia que é capaz de reconhecer a doença pela imagem”.
O professor explica que nem toda doença é possível de ser reconhecida pela imagem, mas as principais doenças do cacau são possíveis de se reconhecer dessa forma. “O especialista, um agrônomo ou um técnico que olha o cacau consegue identificar quando ele está com vassoura de bruxa ou não porque essas doenças se manifestam no exterior da fruta do cacau. Então, quando eu tenho uma doença ou praga que eu consigo diferenciar através do visual, eu tenho um campo onde eu posso utilizar uma tecnologia de IA que a gente chama de visão computacional e que trabalha com esse tipo de reconhecimento de padrões”.
Para que possa reconhecer os padrões e identificar, visualmente, a presença de uma doença, o sistema precisa ser alimentado com uma grande quantidade de imagens que servirão como base. Neste momento, o desenvolvimento da ferramenta está atuando na formação desse banco, que posteriormente servirá não apenas para o funcionamento da ferramenta, mas também como fonte de pesquisa para outros projetos ou trabalhos.
“Uma coisa que a gente também não tinha era um trabalho de reconhecimento para o cacau paraense e nem brasileiro. Então, nós estamos fazendo um levantamento de um banco de imagens do cacau paraense. A partir desse banco de imagens o nosso sistema é capaz de ser treinado para diferenciar os padrões de imagem. Então, dessa forma, quando o software já tiver operacional, o produtor final vai poder fazer isso através do aplicativo”, explica, ao informar que o sistema de IA é treinado para ter uma acurácia entre 97% a 98% de acerto, o que significa que, em cada 100 testes, ele acerta 98.
“Uma coisa legal é que, ao final do projeto, além de entregar o produto, que é o software que vai ser um app, a gente vai poder ter também um banco de imagens do cacau paraense que pode servir para outras pesquisas, para outras produções”. O tem financiamento público que passa pelo Governo do Estado do Pará, através da Fapespa, e pelo Governo Federal, através do CNPQ.
Também com financiamento público, através de recursos do Plano Sub-regional de Desenvolvimento Sustentável do Xingu (PDRSX), do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), outro projeto que vem sendo desenvolvido na Ufra pretende não apenas gerar conhecimento acerca da cacauicultura, mas também formar profissionais que poderão continuar atuando e desenvolvendo pesquisa sobre a cadeia produtiva.
O engenheiro agrônomo e coordenador do Programa de Pós-graduação em Agronomia (PgAGRO) da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), Marcos Antônio Souza dos Santos, explica que o projeto intitulado “Inovação, tecnologia e sustentabilidade para cadeia produtiva da cacauicultura na região da Transamazônica” envolve duas grandes frentes de trabalho, uma delas é a parte propriamente de pesquisa com sistemas de produção de cacau e a outra é a essa formação de capital humano para atuar na cacauicultura, considerando que essas pesquisas vão oferecer suporte para o desenvolvimento de 21 dissertações de mestrado e nove teses de doutorado em agronomia, com foco específico em cacauicultura.
Ao todo, 22 docentes estão envolvidos nessas pesquisas e na orientação desses estudantes de pós-graduação.
“A nossa expectativa com esse projeto é formar esse capital humano, a maior parte desses estudantes profissionais, vivem naquela região e trabalham com cacauicultura”, explica Marcos Santos. “A gente quer dar essa formação a título de mestrado e doutorado para que esses recursos humanos sejam fixados naquela região e exerçam um efeito multiplicador para o futuro, com novas pesquisas, com ações de extensão e de desenvolvimento e inovação tecnológica. Esse é um componente importante porque não é só gerar pesquisa, mas também estamos formando profissionais”.
O professor explica que todas as pesquisas que estão sendo desenvolvidas foram identificadas junto a um trabalho de prospecção de demanda tecnológica. Para isso, foi realizado um estudo, onde foram entrevistadas representações de atores da cadeia produtiva do cacau, como produtores, empreendedores do setor agroindustrial, representantes de agentes financeiros e outras instituições governamentais que atuam na região do Xingu, justamente para que se fizesse a identificação do que realmente é prioritário para o desenvolvimento dessa cadeia produtiva.
“Nesse trabalho nós identificamos as demandas prioritárias de pesquisa e essa identificação foi exatamente que ofereceu o suporte para que a gente fosse definir as pesquisas a serem realizadas”, destaca.
“Hoje, aquela região é o principal polo da produção de cacau no Estado. Os 10 municípios daquela região integração do Xingu têm peso muito grande na produção paraense. 82% da produção de cacau do Pará está concentrada nesses dez municípios e também em termos de Brasil a representatividade é muito grande. 19,2% da área cultivada com cacau no Brasil está concentrada nesses 10 municípios e isso representa, em termos de produção de amêndoa, 43,2% da produção nacional. Então, é um polo de grande representatividade da cacauicultura no Brasil”.
Diante de todo esse desempenho, o professor considera que a região tem potencial para expandir ainda mais a produção, mas, para isso, precisa de pesquisa e capital humano. “O grupo que está a frente deste projeto acredita que essa região tem um potencial imenso para se tornar o principal polo de inovação, competitividade e sustentabilidade da cacauicultura do Brasil e das Américas”, afirma Marcos Santos. “Esse é o esforço e o futuro desejado para essa cadeia, mas esse futuro só vai ser possível se ele estiver fundamentado na construção de sólidos conhecimentos científicos e na formação de capital humano”.