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Humanos sonham em ressuscitar parentes em meio a vácuo jurídico

Brechas na legislação brasileira não dão conta de tecnologias como IA e criogenia. Foto: Divulgação
Brechas na legislação brasileira não dão conta de tecnologias como IA e criogenia. Foto: Divulgação

SAMUEL FERNANDES

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Quando Luiz Felippe Dias de Andrade Monteiro morreu, em 2012, teve início um processo um tanto incomum no Judiciário brasileiro.
De um lado, uma filha dele argumentava que o pai desejava que seu corpo fosse criopreservado -a técnica que envolve congelar em baixíssimas temperaturas uma matéria orgânica. No caso dos humanos, a esperança é que, no futuro, seja possível descongelá-lo e trazer a pessoa de volta à vida.

Outras duas filhas de Monteiro, porém, desejavam um sepultamento tradicional –a reportagem não conseguiu localizar a família dele. O processo foi parar no STJ (Superior Tribunal de Justiça), onde o ministro Marco Aurélio Bellizze era o relator do caso e foi favorável a resguardar o direito de o corpo ser mantido preservado por criogenia nos Estados Unidos.

Por que ocorreu essa decisão?

Isso é o que Carlos Henrique Félix Dantas, doutorando em direito civil pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), explorou em um artigo publicado em 2023.
O advogado afirma à Folha que esse tipo de assunto não é muito comum entre advogados, mas a área tem até um nome: biodireito. O tópico tenta dar respaldo jurídico para tecnologias que ainda não têm um ordenamento jurídico.

E esse é o caso da criogenia. Na realidade, logo no começo da entrevista, Dantas reitera que o termo mais adequado é criônica: esse seria o nome para quando se usa técnicas de criopreservação em corpos humanos. No Brasil, não existe uma legislação específica para lidar com casos como o relatado no começo desta reportagem, mas existem formas de contornar esse vácuo.

A melhor forma para uma pessoa assegurar que seu corpo será criopreservado é adicionar uma cláusula existencial no seu testamento. “Através dessa cláusula, [é possível] trazer diretrizes sobre como você gostaria que houvesse a destinação do seu corpo após a morte”, explica Dantas.

No entanto, quando inexiste um testamento com tal passagem, como o caso de Monteiro, o mais esperado é que ocorra uma investigação para entender qual era o desejo da pessoa antes de morrer a fim de preservar sua vontade. No exemplo de Monteiro, foi isso que aconteceu.

Dantas explica que uma das razões de o ministro do STJ ser favorável ao direito da criogenia foi porque uma das filhas de Monteiro morava com seu pai havia muitos anos. Dessa forma, ela poderia exprimir de maneira mais assertiva qual era a vontade do pai. E, segundo ela, era a criopreservação.

O advogado considera que não ter uma legislação específica para a criônica é uma lacuna, mas ele também diz que outras ferramentas jurídicas, como a investigação da vontade do indivíduo, são suficientes ao menos enquanto a técnica ainda é rara.
Além disso, após o imbróglio envolvendo o corpo de Monteiro, a criogenia em humanos foi equiparada à cremação no Brasil pelo STJ. Desde então, os tribunais devem considerar esse entendimento se houver processos parecidos no futuro.

Outra lacuna nas leis brasileiras diz respeito ao que fazer com dados digitais de pessoas que morreram -esses podem ser usados para criar simulações de falecidos, numa tentativa de “prolongar” a vida daquela pessoa. Nem a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) define o que deve acontecer com tais informações depois do óbito, afirma Livia Teixeira Leal, professora da PUC-Rio e doutora em direito civil.

A advogada, que é especialista em herança digital, vê isso como uma omissão. Mas, assim como a criogenia em humanos, existem formas de lidar com essa brecha. É o caso da tutela da memória, que resguarda a imagem que uma pessoa construiu ainda em vida. “Não é porque uma pessoa morreu que a gente pode violar a honra dela”, resume Leal.
Por exemplo, se uma inteligência artificial (IA) simula uma pessoa que já morreu de uma forma que não condiz com aspectos pela qual o indivíduo era conhecido em vida, o assunto pode ser questionado em um tribunal.

“Há um risco grande à proteção da memória quando […] a máquina [IA] adota comportamentos dissonantes [dos] daquela pessoa em vida. Acho que acarretaria violação da memória da pessoa que faleceu, porque ela não tem mais nenhum controle sobre o que vai ser feito com esse legado”, afirma a advogada.

Leal explica que o Código Civil resguarda que familiares contestem como a honra ou imagem de alguém que morreu vem sendo tratada. Para outras pessoas que não têm parentesco, o tema ainda é discutido no campo jurídico, com alguns especialistas favoráveis e outros não. A professora faz parte do primeiro grupo.

“Quando a gente restringe essa proteção só aos familiares é muito arriscado, porque, em algumas situações, esses interesses da memória da pessoa falecida ficaria sem proteção”, diz.