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Prêmio Sesc é acusado de censura a autor do Pará

Airton Souza chamou o episódio de “criminoso” e “inexplicável”. A editora Record, que há 20 anos publica os vencedores, ameaça suspender parceria se Sesc não se explicar. FOTO: REPRODUÇÃO REDES SOCIAIS
Airton Souza chamou o episódio de “criminoso” e “inexplicável”. A editora Record, que há 20 anos publica os vencedores, ameaça suspender parceria se Sesc não se explicar. FOTO: REPRODUÇÃO REDES SOCIAIS

Guilherme Luis/Folhapress/São Paulo

O Prêmio Sesc de Literatura, conhecido por revelar novos escritores, vem sendo acusado de homofobia e de censurar o romance que laureou no ano passado, “Outono de Carne Estranha”, de Airton Souza, sobre a paixão entre dois homens garimpeiros. A polêmica levou o Grupo Editorial Record, parceiro da premiação, a ameaçar suspender o acordo de 20 anos que mantém com ele.

A empresa reclama que o Sesc não realizou a tradicional turnê de divulgação do livro de Souza e de Bethânia Amaro, vencedora da categoria contos no último ano, por unidades da instituição pelo país. Diz ainda que a demora para a publicação do edital deste ano, em geral divulgado em janeiro, é injustificada, e cita rumores de que o serviço pretende implementar uma instância de avaliação interna.

Por fim, queixa-se de que não foi informada sobre a opção por demitir um dos idealizadores da premiação, o escritor Henrique Rodrigues – afastado em janeiro, segundo ele sem que lhe apresentassem motivos para isso.

Em nota, o Sesc diz que “se reserva o direito de selecionar e manter funcionários que atuem em sintonia com a filosofia e cultura da instituição” e que o prêmio é gerido por uma equipe de profissionais da área de literatura do Departamento Nacional da instituição.

Também nega ter exercido qualquer tipo de censura e não comenta a suposta criação de conselho para avaliação de originais. Afirma que a próxima edição do prêmio acontecerá, e que seu adiamento se deve a uma “revisão no regulamento do concurso com objetivo de ampliá-lo”.

LEITURA NA FLIP

O imbróglio teve início após um mal-estar ocorrido na última edição da Flip, a Festa Literária de Paraty, em novembro passado. Na ocasião, Airton Souza leu um trecho de seu romance numa mesa noturna organizada pelo Sesc que descrevia uma cena de sexo entre dois homens.

Ao jornal “Folha de S. Paulo”, Rodrigues afirmou que a escolha desagradou os diretores da instituição presentes no local.

O Sesc alega que não houve desconforto, mas uma preocupação com o teor do trecho lido, “pois tratava-se de um conteúdo sensível, adequado apenas para o público adulto, e o evento tinha a presença de crianças e adolescentes”.

“Eles são muito tradicionais, eu já sabia que poderiam torcer o nariz. Mas o Airton estava muito emocionado, e já havia lido o mesmo trecho na Casa Record, em outro momento da Flip”, diz o escritor. “Ele insistiu, e não seria eu quem diria que o vencedor do Prêmio Sesc não poderia ler seu livro.”

“Para o público, foi tudo bem, para a Record também. Mas, quando terminou, minha gerente me puxou de canto dizendo que seríamos demitidos. No dia seguinte, houve uma panaceia, criaram um estardalhaço. As chefias ficaram profundamente insultadas”, relata.

Nas redes sociais, Souza chamou o episódio de “criminoso” e “inexplicável”. “Homofobia, censura e assédio moral. Um livro tão bonito sofrendo uma perseguição forte. O bom é saber que gente que eu amo e que admiro estão na mesma trincheira que eu”, escreveu.

DEMISSÃO

Rodrigues entrou de férias depois da Flip. Quando voltou, relata ter ouvido de sua gerente que o Sesc pretendia transferir a gerência da premiação de literatura para a unidade de Paraty e criar uma instância de avaliação interna para avaliar os livros vencedores.

Na opinião do escritor, o objetivo da instituição seria filtrar as escolhas dos jurados, o que para ele prejudicaria a imparcialidade e lisura da premiação.

Um dia depois da conversa com a gerente, Rodrigues foi demitido. “Até a Flip eu era um funcionário exemplar. Adoravam que eu resolvesse pepinos burocráticos. Depois da leitura do livro do Airton, virei um vilão.”

A Record, que publica os vencedores do prêmio desde sua criação, também está insatisfeita. Cassiano Elek Machado, diretor do grupo editorial, afirma que não presenciou o episódio na Flip, mas que a empresa repudia censura e homofobia. Se não houver um retorno rápido do Sesc diante das reclamações, portanto, a editora encerrará a parceria. “Precisamos que sejam mantidas as bases que sempre tivemos, como os jurados independentes. Precisamos também que apresentem um plano para a divulgação dos vencedores, e uma justificativa, ou desculpa formal, para tudo o que tem acontecido”, afirma.

Autor diz que restrição a “Outono de Carne Estranha” é revoltante

Após o sucesso e todo o mérito que recebeu pela obra “Outono de Carne Estranha”, laureada no Prêmio Sesc de Literatura 2023, o escritor marabaense Airton Souza diz que está surpreso com a situação criada desde que participou em novembro do ano passado da Festa Literária Internacional de Paraty – Flip. Depois que leu um fragmento do livro, o escritor paraense diz que passou a viver uma censura à sua obra, que traz um romance homoafetivo entre garimpeiros na Serra Pelada, no Pará, nos anos 1980.

A partir do romance proibido, o autor narra a realidade do que foi o maior garimpo a céu aberto do mundo e mostra o preconceito e o poder do Estado no local. “Eu fui pego de surpresa com essa situação com o que aconteceu comigo desde a Flip, porque eu não sabia o que estava acontecendo dentro do Sesc, principalmente na diretoria, em relação à leitura que eu fiz na noite de premiação do Prêmio Sesc. A leitura que fiz incomodou muito o diretor geral do Sesc. Depois disso, diversas situações vieram à tona. Uma delas, foi um documento interno, uma circular, que está sendo disparada dentro da instituição. O teor do documento é uma censura à condição do meu livro, porque diz que a leitura desperta gatilhos psíquicos nas pessoas. Então, é um sentimento de tristeza, de espanto e de revolta, porque ver uma história sendo atacada pela própria instituição que deveria ajudar o livro é uma tristeza profunda”, define.

De acordo com Airton, ele chegou a ver um rascunho da circular que estava sob a guarda de um funcionário do Sesc. “O documento alerta para o conteúdo do livro, dizendo que é sensível, que desperta estado psíquico na cabeça das pessoas. Isso não é algo que acontece a um livro premiado. Não tem esse tom, por isso me causou espanto, já que por ser um romance, é dirigido a adultos. Então, não precisa de um documento censor para dizer que um livro precisa ser mediado por alguém. Livro para criança é infantil”, pondera.

Ele conta que mesmo antes de subir ao palco para receber a premiação, foi alertado por um funcionário do Sesc que não deveria ler o trecho que escolheu para a ocasião. “Acho que seguindo a orientação da direção, ele veio me pedir para não ler o início do livro. Eu, como autor e por ter essa liberdade, não aceitei e pedi a ele que não me pedisse isso. Foi um indício do que estava acontecendo e o que estava por vir”, acredita.

De lá para cá, Airton Souza gravou um vídeo na última quarta-feira, 6, no qual falou sobre a situação e só então diz ter recebido um telefonema de um representante do Sesc para conversar com ele. “Incomodado com o vídeo, ele me ligou para me ouvir, mas eu disse que eu é que queria ouvir a instituição e saber o que estava acontecendo. Tudo o que eu sei, foi contado por funcionários do Sesc, além da representante da editora Record que participou de algumas reuniões e ficou muito assustada com o que ouviu nesses encontros”, detalha ele sobre os casos de demissão envolvendo os nomes de Henrique Rodrigues, que esteve à frente do Prêmio Sesc desde sua criação, em 2003, e de Luciana Salles, que é gerente de Cultura e foi desligada depois.

O escritor diz que não pretende acionar a Justiça, mas que conta com a idoneidade da instituição para manter o planejamento de circulação do romance pelas unidades do Sesc no país, que deve ocorrer ainda durante o mês de março até dezembro deste ano, como parte do edital de premiação.

Outros paraenses vencedores do prêmio repudiam ação do Sesc

Da Redação*

O escritor e jornalista Fábio Horácio-Castro, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2021, com o romance “O Réptil Melancólico” (também finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos), se solidariza ao escritor conterrâneo após essa onda de censura.

“Fico triste de ver o retrocesso do Sesc. Um retrocesso imposto pelo conservadorismo e pela hipocrisia da sua diretoria. Nenhuma censura é tolerável. O romance de Airton Souza é uma obra de grande mérito literário. O criador do Prêmio Sesc de Literatura e seu coordenador durante vinte anos, o escritor Henrique Rodrigues, é uma pessoa séria e de grande competência; injustamente demitido por se colocar contra a censura imposta pelos diretores da instituição. Expresso toda minha solidariedade ao Airton e ao Henrique”, diz Castro, que atua também como professor e pesquisador na Universidade Federal do Pará (UFPA), lecionando no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e na Faculdade e Pós-Graduação de Comunicação.

Ele se une a outros diversos escritores, como Aline Bei, Pedro Gontijo, Jeovanna Vieira e Pedro Rhuas, que estão se manifestando em relação à polêmica, que também gerou uma nota de apoio ao autor pela Academia de Letras da Bahia. “Espero que a instituição faça uma autocrítica pública e que o prêmio Sesc continue existindo com a mesma imparcialidade que sempre o caracterizou”, diz.

RETROCESSO

Outro escritor paraense vencedor do Prêmio Sesc, Pedro Augusto Baía, premiado em 2022 com seu livro de contos “Corpos Benzidos em Metal Pesado”, declarou sua apreensão pela situação envolvendo um dos concursos literários mais importantes do Brasil. “Estou bastante preocupado e assustado com tudo isso. O Prêmio Sesc de literatura completou 20 anos em 2023. Ao longo dessas duas décadas, tem revelado inúmeras escritoras e escritores em diversos estados brasileiros. O prêmio é reconhecido nacionalmente e internacionalmente, principalmente por causa da atuação brilhante e muito profissional de Henrique Rodrigues, que conduzia o projeto no Sesc até ano passado. Recebi com tristeza a notícia de que ele foi demitido após a Flip 2023”, conta.

Baía, que estava na plateia quanto Airton fez a leitura na Flip, diz que a ação não teve nada que desabonasse o colega paraense ou agredisse o público. “Eu estava lá, juntamente com os demais premiados. A festa foi tradicionalmente bonita, sendo a mediação conduzida de maneira humana por Henrique Rodrigues, que é um apaixonado pela cultura e literatura. Durante o lançamento, foi extremamente emocionante ouvir Airton Souza contar a sua jornada como um escritor paraense, de Marabá. E eu precisei segurar o choro ao ouvi-lo lendo o trecho de seu romance ‘Outono de Carne Estranha’. Por que o choro? Porque o livro trata de uma história de amor entre dois garimpeiros na Serra Pelada: Manel e Zuza. Eu estava diante de um escritor paraense, lendo o seu romance premiado, que leva para o Brasil e o mundo uma história de personagens gays na maior mina de ouro do planeta. Há muita potência literária e poética na obra de Airton. Eu olhava para a plateia e também via muita gente interessada nesse livro, muita gente emocionada com aquela leitura”, conta, dizendo ter se assustado ao tomar conhecimento da censura que o livro vem sofrendo.

“Esta situação é um retrocesso incomensurável para a sociedade como um todo e para a literatura. Mas precisamos pontuar a natureza desta censura. Primeiro, é uma censura sobre um livro literário que retrata uma história de amor entre dois homens garimpeiros; segundo, é uma censura contra um escritor paraense”, alerta. “Sabemos das dificuldades que a literatura paraense enfrenta para se destacar e alcançar leitores no cenário literário brasileiro. Felizmente, a Editora Record, parceira do projeto, tem continuado o trabalho de divulgação do livro, que já está em sua segunda edição”, completa.

Pedro Augusto Baía espera agora que dos manifestos de apoio a Airton Sousa nas redes sociais brotem iniciativas para fazer a obra dele circular e ser lida. “Penso que o principal apoio é apontar a censura e falar sobre o livro, divulgá-lo, colocá-lo em evidência. Por isso, convido todos(as) a ler ‘Outono de Carne Estranha’. Penso ainda que as bibliotecas comunitárias, itinerantes, livreiros, se empenhem em divulgar esses livros que são censurados. Se fecharmos os olhos para isso, estaremos todos sendo coniventes. Recentemente vi uma iniciativa de [drag norte-americana] RuPaul, que é levar para uma maior quantidade de leitores aqueles livros que foram censurados em seu país. Penso que também poderíamos fazer o mesmo, criar estratégias para fazer os livros censurados chegarem a mais pessoas”.

*Com reportagem de Wal Sarges