Grande Belém

Educação por meio da cerâmica em Icoaraci

Mais do que educação patrimonial, a cerâmica também ensina sobre várias outras disciplinas que fazem parte do currículo escolar Foto: Irene Almeida
Mais do que educação patrimonial, a cerâmica também ensina sobre várias outras disciplinas que fazem parte do currículo escolar Foto: Irene Almeida

Cintia Magno

No coração do polo ceramista de Icoaraci, a rotina escolar de crianças do 1º ao 9º ano do ensino fundamental é atravessada pela importância de uma atividade que muitos só tiveram contato através das memórias e atividades desempenhadas por seus avós ou pais. Desde 1996, os alunos do Liceu Escola de Artes e Ofícios Mestre Raimundo Cardoso também são ensinados sobre educação patrimonial a partir da cerâmica, uma tradição que faz parte da própria identidade do bairro do Paracuri.

Terceira geração de uma família de ceramistas, a mestre de oficinas do Liceu Escola, Rosana Cordeiro Pereira, considera que através da cerâmica é possível trabalhar didáticas e metodologias diferentes para cada faixa etária. Mais do que educação patrimonial, a cerâmica também ensina sobre várias outras disciplinas que fazem parte do currículo escolar. “A gente explica de onde vem a argila, como ela é retirada, que é preciso retirar só até um certo limite para deixar a área se recompor e formar nova argila”, introduz.

“Isso que é o legal do Liceu Escola, a gente trabalha em conjunto com a grade curricular, então, a gente consegue agregar a nossa cultura à educação. Com a cerâmica a gente consegue trabalhar português, matemática, história, geografia, educação ambiental, educação patrimonial, até educação física”.

Desde as séries iniciais, a mestre de oficinas considera que é possível trabalhar a coordenação motora grossa e fina através de algumas técnicas da cerâmica, como é o caso de acordelado – técnica em que se utiliza tiras de argila para se criar uma peça. Já com os alunos do 6º ao 9º ano, também é possível trabalhar a questão dos grafismos que estão presentes nas peças tradicionalmente produzidas em Icoaraci, como o grafismo marajoara, o tapajônico, o icoaraciense.

“A gente utiliza a técnica de acordelado, mas ensinando o ABC, as consoantes, as vogais e a gente vai ampliando isso com as séries iniciais. Depois nós passamos para a modelagem com os alunos maiores, do 6º ao 9º, e já conseguimos ensinar a parte do grafismo em si”, pontua Rosana, ao destacar a importância de se resgatar esses saberes entre as novas gerações.

“O liceu fica próximo ao polo cerâmico, então, existem muitos bisnetos, netos e filhos de ceramistas. O que acontece é que muitos deles, hoje em dia, são bisnetos, netos e filhos de mestres, mas nunca entraram numa cerâmica, nunca pegaram na argila porque a cultura foi sendo desgastada e foi se perdendo porque já não estava sendo tão viável economicamente quanto era antigamente. Então, as famílias já buscavam outros meios econômicos para os filhos e netos”.

Na tentativa de manter a cultura e a tradição vivas, a professora lembra que as aulas tentam mostrar para os jovens que a cerâmica não é apenas um vaso que vai parar em uma estante, ela carrega consigo toda uma história que precisa ser preservada.

“Atualmente, a gente também consegue fazer com que essa juventude veja uma oportunidade de empreender no futuro porque muitas vezes a gente traz essa modernidade também para os alunos. A gente trabalha com as biojoias em cerâmicas, agregando também a resina, que é um material que está muito em alta na produção de acessórios hoje. Agregando isso à cerâmica a gente consegue manter a nossa cultura, mas com um conceito mais atual”, considera.

“A minha avó é mestra ceramista fundadora, a mestra Idalina Rodrigues. Ela é uma das ceramistas mais antigas daqui, a minha mãe também é mestra de cerâmica, então, a cerâmica é algo que me preenche muito e, para mim, é muito bom ver eles (as crianças e os adolescentes) aprendendo sobre esse patrimônio”.

PARACURI

Por entre os demais comércios que marcam as principais vias do bairro do Paracuri, em Icoaraci, a presença de lojas onde é possível encontrar as mais variadas peças de cerâmica não deixam esquecer a tradição centenária que está relacionada ao bairro.

Em um desses comércios que seguem atividade no Paracuri, no que atende pelo nome de Olaria do Espanhol, a relação com a cerâmica teve início ainda no início do século XX, mais precisamente em 1903. Ciro Croelhas, mestre ceramista à frente da olaria, conta que tudo começou com o seu avô, que chegou à Icoaraci na virada do século, junto com os demais imigrantes que se deslocavam naquela época.

“Ele veio com a finalidade de trabalhar o que ele já fazia com o pai dele lá na Espanha. O meu bisavô veio junto e instalou a olaria neste mesmo endereço, mas não permaneceu. Ele voltou para a Espanha para buscar, talvez, o resto da família e não retornou mais e assim o meu avô que já estava aqui ficou instalado na olaria, formou a família dele e continuou produzindo o que já se fazia há algumas gerações na família”.

Naquela época, Ciro conta que já existiam algumas poucas olarias que fabricavam peças no Paracuri, mas não com uma finalidade comercial. “Existia uma necessidade, antigamente, de se produzir peças que se chamavam cadilhos, que eram umas peças pequenas usadas para aparar leite de seringa. Aqui tinha um seringal muito grande na época e tinha essa necessidade dessas vasilhas pequenas porque não existia alumínio, não existia a lata, não existia nenhum outro elemento que pudesse fazer isso”, conta. “Então, os poucos que faziam, faziam cadilho, sendo que faziam ainda na técnica de acordelado e a queima era feita na fogueira. Quando meu avô chega aqui, ele chega com a inovação do torno e do forno”.

Ciro conta que o avô começou a demonstrar a técnica no bairro e as pessoas começaram a aprender o trabalho no torno, passando a trabalhar na olaria que, até então, era chefiada por seu avô. Com o tempo, esses oleiros que aprenderam a usar o torno e o forno também começaram a montar as suas olarias no quintal de suas casas para trabalhar com suas famílias e a técnica foi se expandindo.

“A cerâmica feita no rolinho é um processo muito lento e demorado e com o torno foi possível dar velocidade, dar uniformidade e um acabamento melhor. Aí as pessoas que aprendiam passavam a trabalhar até um certo horário e no final da tarde iam trabalhar nas suas olarias próprias, até um ponto que eles começaram a ter os seus próprios clientes e se desligavam da olaria. Daí foi passando de pai para filho, para neto, e assim foi”.

O mestre ceramista lembra, ainda, que até o fim da década de 60, as peças produzidas na região eram todas lisas. Foi já no início da década de 70 que iniciaram os trabalhos com as peças decoradas nos estilos marajoara ou tapajônica.

“Na década de 60 só eram peças lisas, então, todo mundo que fazia, vendia para o Ver-o-Peso. Naquela época não tinha rua para entrar carro, então se levava as peças de canoa. Todo o material que era produzido aqui, a canoa que trazia matéria-prima, levava os vasos pronto para negociar no Ver-o-Peso. O meu avô ia negociar, depois o meu pai passou a ir negociar. Eu não peguei essa época porque no começo da década de 70 já tinham ruas e o carro já vinha aqui na porta, o que facilitou muito”.

Mesmo com a chegada das do estilo de peças decoradas no Paracuri, Ciro conta que a olaria da família manteve o direcionamento de trabalhar com peças utilitárias e lisas, tradição que se mantém há 120 anos. Dessa forma, eles conseguem garantir um bom rendimento pelo volume de peças fabricadas e vendidas. Somente em 2023 a olaria produziu 70 mil peças.

“Quando chegou no final da década de 60 e início da década de 70, o pessoal começou a procurar a questão das louças decoradas porque tinham muito valor agregado. E o fato de ter muito valor agregado leva você a diminuir a quantidade de peças que você produz, mas no nosso caso a gente não mudou isso. A gente continuou trabalhando o volume, então, eu ganho no volume, e os mestres que trabalham com as peças decoradas ganham no trabalho a mais que eles fazem”, relaciona.

“Todas essas décadas, mais de 12 décadas, a gente tem se pautado a produzir aquilo que o cliente está precisando, por isso é utilitário, e assim a olaria vai se encaminhando. A gente trabalha com quatro oleiros, que produzem essas quase 70 mil peças por ano”.

OLEIROS

Entre esses oleiros está Leopoldo Croelhas, 75 anos de vida e 60 de ceramista. Parente de Ciro, ele lembra que começou a se interessar pela cerâmica quando acompanhava a mãe que trabalhava na mesma olaria que ele atua hoje. “Eu sempre fui daqui do Paracuri e eu vinha acompanhando a minha mãe que trabalhava aqui na olaria. Eu gostava de ficar aqui e ia fazendo as bolinhas e colocava aqui na mesa e quando o mestre saía da roda para ir tomar um café, eu rápido me sentava na roda, colocava uma bolinha e já ia tentando moldar. E foi assim até que eu fui crescendo e já peguei um torninho que tinha pra eu fazer as tigelinhas e eu fui, fui. E daí eu fiz a minha profissão”, lembra.

“Eu saí daqui só por três anos para servir o Exército e depois que eu acabei de servir, eu voltei para a cerâmica. A cerâmica é o patrimônio de Icoaraci e pra mim é muito importante manter esse trabalho. A minha família todinha eu criei daqui e assim a gente vai prosseguindo a vida. Graças a Deus a produção aqui é muito grande, então, a gente não para, nunca ficamos parados, sem trabalhar”.

Saiba mais

  • LICEU

O Liceu Escola de Artes e Ofícios Mestre Raimundo Cardoso é gerenciado pela Prefeitura de Belém, através da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semec).

  • ECOMUSEU

Para registrar os seus mais de 120 anos de história, a Olaria do Espanhol inaugurou em 2022 o Ecomuseu da Olaria do Espanhol, que é um braço do Ecomuseu de Belém. A iniciativa contou com o apoio da Prefeitura de Belém, por meio do Núcleo de Arte, Cultura e Educação (Nace) da Semec.