Fábio Nóvoa

Sobre Anatomia de Uma Queda

O que diferencia os bons diretores de cinema, independente da sua obra ser marcante ou não, é a visão global que estes têm do seu trabalho e a confiança na equipe que comanda. Mesmo em obras consideradas “simples”, é possível discutir questões complexas e estabelecer paralelos estéticos e textuais sobre o cotidiano usando artifícios comuns. É o caso de Justine Triet e o ótimo “Anatomia de uma Queda” (2023).

Da reforma não terminada da casa, ao clima gelado, chegando na composição das cenas no tribunal, Triet prepara com poucos recursos e um domínio de cena absurdo, todo o terreno da ambiguidade moral que todos os personagens percorrem, na linha tênue entre o maniqueísmo e a dubiedade das relações humanas.

A diretora não parece interessada em estabelecer culpa ou “plots twists” na história do professor frustrado que aparece morto na frente de casa, enquanto a esposa escritora é a principal suspeita, com uma longa investigação tentando estabelecer se foi suicídio, homicídio ou acidente. O que está em jogo aqui é como os personagens se interrelacionam antes e depois do ocorrido.

A partir disso, temos um trabalho magnífico de Sandra Hüller, que em gestos, olhares e falas pausadas, consegue confundir os atores envolvidos no processo (e o público, por conseguinte) sobre seu papel no ocorrido. Em diversos momentos, não sabemos se sua personagem, Sandra, está sendo acuada, manipulada ou comandando “o jogo”, com expressões de alívio, raiva ou sofrimento genuínos, seja no julgamento ou nos momentos de flashbacks. Assim como o menino Milo Machado Graner, que investe em uma atuação madura como o filho cego que duvida da própria participação no caso, em mais um trabalho magnífico de Triet no design de som e de produção.

E ainda há toda uma camada reservada à observação do sensacionalismo midiático e judiciário, com diversas participações que, propositalmente, fincam o pé no clichê argumentativo e interpretativo, como o promotor desafiador e repórteres com perguntas incisivas e dúbias. Um parêntese aqui também: os créditos de abertura simulam também a parte inicial de séries de tribunal, mostrando novamente que nada aqui é por acaso e que a diretora e roteirista francesa (que escreve o filme com o marido, Arthur Harari) sabe o tipo de deboche e catarse que quer causar. O tipo de obra para admirar e refletir bastante depois sobre como as relações humanas se chocam como farsa ou tragédia, ad infinitum.

“Anatomia de uma Queda” venceu com méritos a Palma de Ouro em Cannes e concorre a 5 Oscars: Melhor Filme, Atriz (Sandra Hüller), Direção (Justine Triet), Roteiro Original e Montagem. Está em exibição, em Belém, no Cine Líbero Luxardo. Consultem a programação.