MICHELE OLIVEIRA
MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – A recente e histórica decisão do Vaticano de liberar padres para abençoar casais do mesmo sexo provocou nova agitação entre a ala conservadora da Igreja Católica que faz oposição ao papa Francisco. Desde a morte de Bento 16, que completa um ano neste domingo (31), esse grupo vive uma disputa interna pelo legado de Joseph Ratzinger, um pontífice que defendeu até o fim a ortodoxia católica.
No último dia 18, o Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), comandado pelo cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, publicou o documento “Fiducia supplicans”, em que autoriza a bênção de casais descritos como “irregulares”, categoria em que se enquadrariam homossexuais, divorciados e poligâmicos.
O texto, aprovado por Francisco, não altera a doutrina sobre o sacramento do matrimônio, somente permitido entre homem e mulher, e esclarece que a bênção não pode se parecer em nada com o rito do casamento.
Mesmo assim, nos dias seguintes, vieram as críticas. Figura expoente do grupo conservador, o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito emérito do DDF, dirigido por ele de 2012 a 2017, publicou uma nota em resposta no site católico americano The Pillar. Nela, afirma que o padre que abençoar casais “irregulares” estará cometendo um ato de sacrilégio e de blasfêmia.
“Abençoar uma realidade contrária à criação não é apenas impossível, é uma blasfêmia. Não se trata de abençoar as pessoas que ‘vivem numa união que não pode de forma alguma ser comparada com o casamento’, mas de abençoar a própria união que não pode ser comparada com o casamento”, diz Müller, citando trecho do documento da Santa Sé.
Em outro momento, o alemão afirma que Deus não pode enviar “sua graça a uma relação que lhe é diretamente oposta”. “Se essa bênção fosse dada, o seu único efeito seria confundir as pessoas que a recebem. Eles pensariam que Deus abençoou o que ele não pode abençoar”, diz. Por fim, alerta que o critério de bênção “pastoral”, como foi definida pelo Vaticano, poderia ser estendido também a “uma clínica de aborto ou a um grupo mafioso”.
Outra reação negativa tem vindo do continente africano, ao qual o papa Francisco dedica especial atenção. Depois da declaração do Vaticano, a maioria dos bispos da Zâmbia e do Maláui anunciaram que não permitirão a padres fazerem a bênção a casais do mesmo sexo.
Nos Estados Unidos, onde no dia seguinte à declaração do Vaticano um padre abençoou um casal de homens em Nova York, a conferência de bispos divulgou uma nota sóbria em que chama a atenção para a diferença entre a bênção litúrgica e a bênção pastoral. “O ensinamento da Igreja sobre o casamento não mudou, e a declaração afirma isso”, diz.
É justamente nos EUA que cresce, ano após ano, uma das maiores resistências às ações de Francisco. O papa, por sua vez, passou a reagir. Em novembro, por exemplo, ele demitiu o bispo Joseph Strickland da diocese de Tyler, no Texas. Dias depois, a imprensa italiana revelou que o Vaticano cortaria o salário e o aluguel em Roma pagos ao cardeal da ala tradicionalista Raymond Burke, crítico eloquente do processo sinodal de Francisco.
“Burke e Strickland pertencem a uma cultura parecida, mas são histórias muito diferentes”, afirma à reportagem Massimo Faggioli, professor de teologia histórica da Universidade de Villanova, nos EUA. “Strickland era mais exposto porque era responsável por uma diocese da qual saíram reclamações sobre sua forma de governar, principalmente na pandemia. Seu afastamento foi para proteger os católicos de lá, consequência de um processo.”
Já o caso de Burke seria mais confuso. “Não está claro o que desencadeou essa decisão de Francisco, que pode ser uma faca de dois gumes. O risco é de restituir a Burke uma certa notoriedade”, diz o professor. Aos 75, o religioso pode votar em conclaves até completar 80 anos –e, em teoria, também ser votado. Além disso, é próximo a um círculo de pessoas ricas nos EUA, onde tem acesso a recursos financeiros.
Tanto Burke quanto o cardeal Müller, 75, são personagens proeminentes entre os conservadores, mas não têm a mesma estatura teológica de Ratzinger nem perfil para unificar correntes. “Existem algumas vozes que querem ter essa função de herdeiro de Bento 16, mas que não têm a mesma credibilidade dele”, diz.
Logo após o funeral de Ratzinger, em janeiro, Faggioli posicionava Müller em um plano mais destacado que os demais. Mas, quase um ano depois, vê-o mais atrelado a círculos americanos e menos como um candidato a porta-voz do legado de Bento 16.
Ao mesmo tempo, o professor inclui o cardeal húngaro Peter Erdo, 71, nessa lista de postulantes. “Ratzinger deixou muitos seguidores entre bispos, jovens padres e teólogos, mas no nível eclesiástico não deixou um herdeiro”, avalia.
Depois de quase 11 anos de papado, Francisco moldou o colégio cardinalício à sua imagem. Atualmente, dos 134 que têm possibilidade de votar, por terem menos de 80 anos, 97 foram indicados pelo argentino, 28 pelo alemão e 9 por João Paulo 2º (1920-2005). Com o passar do tempo, Francisco vem superando o núcleo duro ratzingeriano.
Se os conservadores não possuem um nome universalmente reconhecido como porta-voz de Bento 16 -e, ao mesmo tempo, como alternativa a Francisco no próximo conclave-, o mesmo pode se dizer do campo pró-Jorge Bergoglio. Com o aniversário de 87 anos do papa, comemorado este ano, e a fragilidade de sua saúde, as conversas sobre a sua sucessão ganharam mais tração.
“A falta de nomes evidentes é um problema geral, que também se aplica aos cardeais de Francisco. Não existe um bergogliano que seja o sucessor ideal”, diz Faggioli. O resultado é que o próximo conclave, seja quando for, deverá ter um resultado ainda mais imprevisível.
Isso ocorre, segundo o especialista, pelo fato de o clero também ter cedido à sedução midiática de massa. “Cada personagem tenta conquistar seu espaço, seja com seu livro, sua conferência, sua ideia, sua atividade -um sistema de mercado mesmo. É muito mais competitivo e é mais difícil adquirir uma posição dominante”, avalia o professor.
Há um ponto, no entanto, em que o campo conservador, em especial aquele nos EUA, está em vantagem. Em vez de somente esperar pelo fim do pontificado de Francisco e tentar influenciar a escolha do próximo papa, esses grupos investem na formação da nova geração, em uma estratégia de longo prazo.
“Nos EUA, muitos bispos sabem que a maior parte dos seminaristas, os futuros padres, pensam como eles e não como Francisco. Esse campo sabe que o futuro da Igreja, como os conservadores a veem, não depende totalmente de um papa”, diz.
“O papa pode ser ser um liberal, mas se a maior parte dos padres é conservadora e, por exemplo, não quer trabalhar com mulheres, ter um papa de um certo tipo é uma vitória menor.”