
“Monstros são reais, e fantasmas também. Eles vivem dentro de nós e, às vezes, eles vencem”. A frase, cunhada pelo mestre do terror, Stephen King, norteia praticamente toda a sua obra. Ela diz respeito à batalha que travamos com os vilões que habitam o nosso imaginário e que encontram paralelo em um cotidiano ameaçador, resultado direto dos nossos medos e anseios. Nesse contexto, talvez, a figura de Pennywise seja quem melhor representa esse mantra do autor. Afinal, é através dele que o mais puro terror se manifesta, gelando a espinha e a alma. E em “IT: Bem-vindos a Derry”, cujos dois primeiros episódios já foram liberados pela HBO Max, a Coisa está de volta. Ao que parece, em toda a sua glória.
Série derivada não apenas do livro de King – baseada em seus interlúdios, à parte da história principal -, mas também do universo criado pelos filmes de Andy Muschietti, de 2017 e 2019, “Bem-vindos a Derry” se beneficia dessa familiaridade do público. Embora seja completamente acessível para quem tem nela o seu primeiro contato com “IT” ou mesmo com Stephen King como um todo, fica óbvio que o mergulho é muito mais profundo para aqueles que já são fãs. Interligar os detalhes, perceber nomes conhecidos, cenários, etc, é sempre um exercício satisfatório. Mas, no caso desses primeiros episódios da série, fica ainda melhor, pois esses fan services são orgânicos à narrativa, que jamais perde o fio da meada.
É interessante notar também como, acredito que pela primeira vez, Derry esteja sendo tratada como um personagem em si. No livro, a presença de Pennywise na cidade desde tempos remotos a torna uma influência extremamente negativa aos seus habitantes. E isso é assustador. Uma animosidade e maldade latentes. Nos dois primeiros episódios, Derry mostra a sua face, essa sensação constante de que algo ali não está certo, apesar da sua aparente normalidade. E o panorama racial dos anos 1960 se insere como ponto importante para criar essa tensão.
Inclusive, a abertura da série, revelada no episódio 2, segue essa linha. É uma sequência animada e “fofinha”, mas com ilustrações perturbadoras, com direito a cantos escuros, perigos e caos. A música “A Smile And a Ribbon” dá o toque final de ironia, mostrando que por baixo da capa de inocência e trivialidade se escondem segredos obscuros.
Mas claro que só ambientação correta não basta. É preciso que tenhamos identificação com os personagens. Um dos grandes acertos da releitura de “IT”, em 2017, foi a escolha do elenco e a construção paulatina de suas personalidades e entrosamento. Pois aqui Muschietti vai bem mais uma vez. Tudo é feito com bastante esmero e paciência, dando tempo para que possamos nutrir sentimentos de afeição ou repulsa.

É bom lembrar que a trama se passa 27 anos antes dos acontecimentos originais (serão três temporadas, que mostrarão os anos de 1962, 1935 e 1908), portanto um erro nas referências sobre parentescos, por exemplo, ou sobre quem poderia ou não estar ali, impactaria diretamente em obras posteriores e consolidadas. Basta saber que temos aqui um tio de Stan Uris, o nome do pai de Beverly Marsh rabiscado no colégio, os sobrenomes Hanlon e Bowers em personagens importantes, etc. Fora a presença de Dick Hallorann, de “O Iluminado”. O malabarismo precisa funcionar. Até agora, tudo certo.
Já não mostrar Pennywise em sua forma clássica de palhaço até aqui também é uma opção acertada, já que permite trabalhar com a imaginação e vislumbrar o seu poder de aterrorizar as crianças a partir do que mais as aflige, do seu sentimento de culpa. O luto não resolvido, certamente, é o principal catalisador. Assim, já tivemos algumas criaturas bem bizarras para apreciar. Ou não. Afinal, neste aspecto, é nítido que as criaturas funcionam bem melhor quando a direção faz uso de efeitos práticos. Quando os elementos digitais prevalecem o resultado não é tão bom quanto. É importante ter aquela gosma, animatrônicos, sentir que o medo na tela é palpável e não só uma mera representação.

Por fim, fico curioso para saber como será trabalhada a linha narrativa daqui por diante. Especialmente a trama envolvendo o major Hanlon e Dick Hallorann, com o papel das forças armadas nessa ameaça sobrenatural e o dom da iluminação. Aliás, as referências a Maturin, a entidade cósmica benevolente e arqui-inimigo de Pennywise, também são ótimas e prenunciam que mais disso será explorado adiante, assim espero. Mas fica óbvio que são as crianças mesmo os fios condutores da série. E que bom que é assim. Pois “IT” trata, antes de tudo, de uma alegoria para o processo de amadurecimento, é um rito de passagem (inclusive, já escrevi sobre isso em uma coluna anterior), e negar isso seria ir contra o espírito da obra. Que essa expansão do universo de King continue nesse ritmo.
Onde assistir
- “IT: Bem-vindos a Derry” está disponível para streaming na HBO Max. Dois episódios já foram liberados. São oito no total, sempre aos domingos. Os próximos: 9, 16, 23 e 30 de novembro; 7 e 14 de dezembro.
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