Mais de R$ 103 milhões já foram pagos pela Prefeitura de Ananindeua, desde janeiro de 2021 até o último 8 maio, ao Hospital Santa Maria, que pertence ou pertenceu ao prefeito da cidade, Daniel Santos. Os números são do portal da Transparência e foram atualizados pelo DIÁRIO com base no IPCA do mês passado. A fartura de dinheiro para o Santa Maria é o oposto da situação dramática de outros hospitais e clínicas da cidade, que sofrem com os sucessivos calotes do prefeito. Dois hospitais já fecharam as portas e outro quase foi à falência. A crise também ameaça pelo menos uma clínica de hemodiálise, gerando protestos dos pacientes.
Em meio ao caos, moradores de Ananindeua são obrigados a recorrer cada vez a hospitais de Belém e do Governo do Estado, que registraram um aumento de 88 por cento, em dois anos, do atendimento ambulatorial e hospitalar a pacientes vindos daquela cidade. Segundo o Sistema de Informações Ambulatoriais e Hospitalares (SIA/SIH) do Ministério da Saúde, foram 196.225 atendimentos a moradores de Ananindeua, no primeiro trimestre de 2023, número que saltou para 368.518, no primeiro trimestre deste ano. A crescente procura sobrecarrega os hospitais de Belém, colocando em risco milhares de pacientes de toda a Região Metropolitana.
Há indícios, apontados pelo Ministério Público do Pará (MPPA), de que esse caos é provocado pela tentativa do prefeito de “eliminar a concorrência”: ou seja, os demais hospitais da cidade, em benefício do Santa Maria. Entre 2021 e 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) repassou à Prefeitura quase R$ 1 bilhão, mais da metade para o pagamento de serviços hospitalares e ambulatoriais, diz o InvestSUS, serviço online de consulta a todos os repasses do SUS aos estados e municípios. O dinheiro foi repassado mês a mês, sem interrupções. Mesmo assim, hospitais e clínicas de Ananindeua sofreram sucessivos calotes do prefeito, com atrasos de pagamento que se arrastaram, em geral, por 6 meses ou mais.
No ano passado, os calotes quase levam à falência o Hospital de Clínicas de Ananindeua (HCA). Em janeiro deste ano, levaram ao fechamento do Hospital Anita Gerosa, a única maternidade que funcionava 24 Horas e atendia gravidez de alto risco, naquela cidade. Também ameaçam a sobrevivência do Centro de Hemodiálise Ari Gonçalves (CEHMO), concorrente de uma clínica de hemodiálise que funciona no Hospital Santa Maria. Só ao HCA, Anita Gerosa e CEHMO, a Prefeitura devia, no final do ano passado, cerca de R$ 13 milhões, apesar de receber, em média, R$ 21 milhões mensais do SUS. E apesar de ter pagado ao Santa Maria mais de R$ 22 milhões (atualizados), só no ano passado.
PARA ENTENDER
Veja quanto o Hospital Santa Maria, que foi ou ainda é do prefeito Daniel Santos, recebeu da Prefeitura de Ananindeua, de 2021 até o último 8 de maio. Os números são do portal da Transparência e foram atualizados pelo IPCA de Abril/2025.
Confira os valores pagos por ano:
- 2021: R$ 17.417.507,45
- 2022: R$ 25.871.198,06
- 2023: R$ 29.519.786,14
- 2024: R$ 22.084.260,03
- 2025 (até 08/05): R$ 8.441.403,23
Total pago até 08/05/2025: R$ 103.334.154,91
Prefeito dá calote no CEHMO e turbina clínica de ex-sócio
A situação é tão grave que, em janeiro deste ano, o Ministério da Saúde teria enviado um pedido de informações à Sesau, a secretaria municipal de Saúde de Ananindeua, sobre a dívida com o CEHMO, que seria superior a R$ 2,6 milhões. Segundo fontes do setor, documentos sobre o caso teriam sido encaminhados ao Ministério pelo advogado do CEHMO. E o Ministério teria então solicitado à Sesau que lhe enviasse esclarecimentos, no prazo de 30 dias, uma vez que já havia repassado todos os recursos devidos àquela clínica, não existindo motivo para essa dívida. O problema, porém, é justamente este: ninguém sabe o que a Prefeitura fez com o dinheiro do SUS. Só no final do ano passado, pagamentos ao CEHMO estariam com mais de um ano de atraso.
Documento obtido pelo DIÁRIO informa que a Prefeitura recebeu do SUS, em 2023 e 2024, cerca de R$ 27 milhões para o pagamento de três clínicas de hemodiálise de Ananindeua: CEHMO, DaVita e Nefro Saúde. Outros R$ 3,7 milhões foram repassados no primeiro trimestre deste ano. O portal municipal da Transparência mostra a redução dos pagamentos ao CEHMO e o crescimento dos ganhos da Nefro Saúde, que pertence à esposa do empresário Elton dos Anjos Brandão, ex-sócio do prefeito Daniel Santos no Hospital Santa Maria. Entre 2021 e 2023, a média anual de pagamentos ao CEHMO foi superior a R$ 7,2 milhões (atualizados). Um valor que despencou para cerca de R$ 1,3 milhão, no ano passado. Já a Nefro Saúde não recebeu nada em 2021 e 2022, e apenas R$ 28 mil, em 2023. Mas, no ano passado, os pagamentos para ela alcançaram mais de R$ 4,4 milhões (atualizados).
O contrato entre a Prefeitura e a Nefro Saúde foi assinado em abril de 2023. Mas parece só ter se tornado rentável no ano passado, após a transferência de vários pacientes do CEHMO para lá. Por “coincidência”, isso ocorreu no mesmo ano em que a Justiça bloqueou os bens do Santa Maria e do empresário Elton dos Anjos Brandão, após uma operação do MPPA que desarticulou uma suposta quadrilha que teria desviado mais de R$ 261 milhões do Iasep (o instituto de Assistência ao funcionalismo estadual) para aquele hospital. As fraudes teriam ocorrido entre 2019 e meados de 2023. O prefeito Daniel Santos foi sócio do Santa Maria de 2014 até meados de 2022, segundo os registros da Junta Comercial do Pará (Jucepa). Mas há suspeitas, no MPPA, de que ele continuou como “sócio oculto” daquele hospital.
MPPA e a saúde em Ananindeua
Em 18 de fevereiro deste ano, o então Procurador Geral de Justiça (PGJ), César Mattar, que comandava o MPPA, ajuizou uma Representação Interventiva, pedindo que a Justiça determine a intervenção na Saúde de Ananindeua, pelo Governo do Estado. Segundo ele, a cidade enfrenta uma crise “sem precedentes”, com prejuízos à população local e à toda a Região Metropolitana, já que o fechamento de hospitais obriga ao deslocamento de pacientes de Ananindeua, para as cidades vizinhas. Isso aconteceu, por exemplo, após o fechamento do Anita Gerosa: grávidas que eram atendidas por ele passaram a procurar a Santa Casa, em Belém. O Anita Gerosa era um hospital sem fins lucrativos com mais de 60 anos. Ele atendia cerca de mil pacientes e realizava 200 partos por mês.
Segundo a Representação Interventiva, a Prefeitura vem realizando uma “gestão temerária” do sistema municipal de saúde, com “atrasos sistemáticos” no pagamento de clínicas e hospitais, o que leva alguns “à iminente suspensão do atendimento pelo SUS”, e outros, ao próprio fechamento. Um fato que acaba impactando também os municípios vizinhos, devido à intensa procura de atendimento por moradores daquela cidade. E que representa uma violação ao direito à saúde e à vida da população de toda a Região Metropolitana de Belém. Além disso, a Representação compara o que a Prefeitura vem fazendo a uma prática empresarial conhecida como “dumping”: a eliminação da concorrência “por meio de práticas maliciosas e desleais”.
Isso porque, escreveu César Mattar, hospitais e clínicas “estão prestes à ruína econômica pela falta de pagamento pelos serviços já prestados aos usuários do SUS”, o que possibilita direcionar o atendimento ao Santa Maria, “de propriedade do gestor municipal até o ano de 2022”. Assim, enquanto essas unidades de saúde vão deixando de funcionar, o Santa Maria “pode conquistar maiores fatias do orçamento público da saúde de Ananindeua”, com o atendimento desses pacientes. No ano passado, também o Hospital das Clínicas de Ananindeua (HCA) chegou a anunciar que encerraria o atendimento aos pacientes do SUS, devido ao atraso dos pagamentos pela Prefeitura. O que só não ocorreu porque o Governo do Estado firmou um contrato com o hospital. Segundo César Mattar, o fechamento de unidades de saúde e o encerramento de contratos com a Prefeitura “revelam a falência da gestão municipal da saúde”.
Fechamento de Hospitais
O primeiro hospital de Ananindeua a fechar na administração do prefeito Daniel Santos foi o Camilo Salgado, no bairro do Coqueiro. Ele foi desapropriado em 2021, para a construção do Pronto Socorro Municipal,
O combinado foi que a indenização pela desapropriação, que era de R$ 14 milhões, deveria ser totalmente paga em 2022. Mas as parcelas, que eram mensais, acabaram quitadas com até 6 meses de atraso. Assim, em dezembro de 2023, quando suspendeu os pagamentos, a Prefeitura ainda devia R$ 4 milhões aos donos do hospital.
Com isso, eles entraram na Justiça, em março do ano passado, para tentar receber esse dinheiro. Segundo eles, os constantes atrasos de pagamento e o calote milionário do prefeito impediram que o Camilo Salgado fosse reaberto em outro local. Além de prefeito, Daniel Santos é médico.