RELIGIOSIDADE

Oração na madrugada vira fenômeno digital entre cristãos no Brasil

Fiéis, líderes religiosos e especialistas afirmam que o momento de solitude e silêncio é considerado propício para conexões religiosas.

Testemunhe a luta contra a possessão demoníaca através dos olhos de um exorcista. Saiba como a oração é sua principal arma.

Hábito secular que une tanto evangélicos quanto católicos, os momentos de oração durante as madrugadas passaram, em tempos digitais e de alta exposição às telas, a contar com a ajuda de um novo canal para a comunicação com Deus. Transmissões ao vivo feitas em plataformas digitais e dedicadas à prática durante esse período do dia se transformaram em um fenômeno de audiência no Brasil – onde 83,6% da população é cristã, de acordo com o Censo 2022 – e, segundo o próprio YouTube, já são hoje um dos conteúdos mais relevantes da rede no país.

Fiéis, líderes religiosos e especialistas afirmam que o momento de solitude e silêncio é considerado propício para conexões religiosas, o que ajuda a explicar a tendência que ganha força nas redes sociais. Além disso, pastores costumam citar passagens da Bíblia, como a preferência de Jesus por orar sozinho na madrugada, para incentivar o hábito.

Em outra frente, há fatores sociais envolvidos: a madrugada, em muitos casos, pode ser a melhor alternativa de tempo livre. O aumento da presença, nas lives, de pessoas com insônia e dificuldades para dormir ou que relatam problemas diversos na vida é outra explicação apontada para o crescimento do formato, que se consolidou na pandemia.

Um dos precursores do fenômeno das orações em lives é Frei Gilson, titular da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo da Diocese de Santo Amaro, em São Paulo. Todas as sextas, o líder religioso transmite ao vivo o seu já famoso Rosário da Madrugada em seu canal no YouTube, que conta com mais de sete milhões de inscritos e no qual alterna rezas de terços, testemunhos de milagres e cantos.

Durante a última Quaresma, período que antecede a Páscoa no cristianismo e considerado importante para práticas de penitência e disciplina espiritual, Frei Gilson, que também é cantor e influenciador digital, realizou lives diariamente às 4h e alcançou um pico de mais de um milhão de usuários conectados simultaneamente. O grande público veio poucos dias após o religioso ter criado polêmica ao falar, no Dia Internacional da Mulher, que a fraqueza feminina era “sempre querer mais” e de ter recebido apoio de lideranças bolsonaristas, após ser alvo de críticas.

As lives da madrugada, porém, não ficam restritas aos católicos e também têm muita participação evangélica. O bispo Bruno Leonardo, que tem 56,2 milhões de inscritos no YouTube, e o pastor Antônio Junior, com 15,6 milhões de seguidores, estão entre os nomes conhecidos no meio.

Antônio Junior, que é natural de São Sebastião do Paraíso (MG) e que passa uma temporada na Flórida (EUA), conta ter sido um dos primeiros a apostar no formato de lives de oração, há cinco anos. A chamada “oração da manhã” era inicialmente feita às 7h, depois passou para as 5h, e há três semanas foi antecipada para as 4h, justamente pela alta demanda da madrugada, quando há até cerca de 300 mil pessoas conectadas simultaneamente.

– Antigamente tinha pouca visualização de madrugada, mas hoje explode. As pessoas estão com dificuldade para dormir, seja pela tecnologia, porque ficam muito tempo na tela, ou pelas preocupações da vida. Não conseguem desligar muito. O pessoal vem ficando muito ansioso, né? Falo muito disso nas minhas mensagens – explica o pastor, que valoriza o “lugar de silêncio” da madrugada. – Jesus orava nas madrugadas para escolher discípulos. Há versículos que dizem que Jesus será encontrado na madrugada. Cristão tem hábito de orar nesse horário, assim como no monte, por ser um lugar sem distração.

Atualmente, Antônio Junior publica vídeos de orações, previamente gravados, em cinco momentos do dia. Em média, eles somam 560 mil visualizações diárias.

No canal da Igreja Deus é Amor, há lives de orações 24 horas por dia. Segundo Lucas Miranda, head de comunicação da igreja, os momentos de pico são justamente na madrugada, entre 1h e 6h, quando a média de audiência costuma ser de cinco a dez vezes maior do que no resto do dia:

– A madrugada tem um valor simbólico e espiritual muito forte, representa renúncia, entrega e intensidade na busca por Deus. Orar de madrugada é um hábito enraizado, o que nos surpreendeu foi a profundidade do engajamento, em média de 40 minutos. Não é uma audiência casual, é uma audiência que realmente permanece em oração.

O canal da Deus é Amor, que tem transmissões de orações de diferentes pastores, em vários lugares, foi lançado há pouco mais de um ano e tem mais de 100 mil inscritos. O formato difere de um culto, por ser intimista, simples, com uma câmera estática.

– É como se estivéssemos orando diretamente do nosso quarto. É propositalmente simples, para que qualquer pessoa, em qualquer lugar, possa se conectar com Deus – explica Miranda.

Perfis menores, como do pastor Miquéias Tiago, com 1,8 mil inscritos, também têm nas madrugadas seu principal público. Segundo Tiago, a pandemia foi um momento de consolidação desse formato, já que as pessoas ficavam muito mais tempo em casa.

– Existe todo tipo de pessoas nas lives, mas em sua maioria têm mais de 30 anos, principalmente idosos. As mulheres são a maior parte. E não é incomum termos pessoas da comunidade LGBTQIAP+, além de não serem apenas evangélicos que participam. Já tive ateus, umbandistas e católicos – conta o pasto

Diretora de Parcerias YouTube Brasil, Patricia Muratori confirmou a importância das lives de oração entre os diferentes formatos de transmissão ao vivo que angariam milhões de espectadores na plataforma.

– Nas lives religiosas pela madrugada, tem um milhão de pessoas orando juntas, assim como a gente tem os recordes das lives de futebol indo para o mundo – revelou Muratori durante o evento sobre inovação Rio2C, realizado há duas semanas no Rio.

A professora Maria Clara de Jesus Alves é uma das que aderiram ao hábito de rezar de madrugada, que aprendeu em um mosteiro. Hoje, ela, que é católica, diz que as 4h é o único horário fixo que ela reserva para a oração, e que percebe esse fato em comum com muitos outros fiéis:

– O nosso despertador toca para diversas coisas, para trabalhar, para estudar, academia, mas raramente toca para a oração, então eu acho importante ter uma hora específica do meu dia para rezar também, nem que para isso precise fazer o “sacrifício” de acordar um pouco mais cedo.

Doutor em ciência política pela USP e pesquisador da relação entre religiões evangélicas, política e cultura, Vinicius Valle explica que a tradição da oração de madrugada existe desde a Idade Média. Na era moderna, lideranças evangélicas mantiveram esse hábito, seja em vigílias nas igrejas, mas também na televisão e na rádio, inicialmente, pelo valor mais baixo para a compra desses espaços.

– É uma prática secular, foi mudando de meio, mas se manteve. E com a pandemia se intensificou bastante, quando lideranças entraram nas redes sociais e usaram o horário da madrugada. Não precisa de aparato tecnológico superavançado para as transmissões. E perpassa diferentes tradições, tanto da matriz evangélica quanto católica – conclui.

Texto de: Lucas Altino